O regresso de Grândola Vila Morena
Ao que parece, a moda está a pegar. Agora, de cada vez que um membro do Governo aparece em público para falar sobre algum assunto, levanta-se logo um grupo de pessoas que começa a cantar o "Grândola Vila Morena", a célebre música de Zeca Afonso, que serviu como senha para o início da revolução, em 25 de Abril de 1974.
Passos Coelho foi a primeira vítima do Grândola, no parlamento, mas não lhe deu para cantar a acompanhar os protestos. Já Miguel Relvas, ontem, caiu na asneira de tentar trautear a música. O resultado foi um perfeito desastre. As imagens de Relvas a cantarolar a Grândola são patéticas, e aquele sorriso forçado que acompanha a cantoria roufenha vai ficar para a história dos momentos mais ridículos da nossa democracia.
Mas, o que me importa hoje é o simbolismo destes protestos. Ao fim de quase dois anos de Governo, Passos Coelho e Gaspar castigaram de tal forma o país que estão a conseguir unir as esquerdas, e o traço dessa união começa com coisas tão simples como músicas, no caso a Grândola Vila Morena.
A austeridade brutal a que Passos e Gaspar têm submetido o país e os seus terríveis resultados, mas sobretudo a ideia de que esta austeridade é ideologicamente motivada, e que há uma intenção clara de destruição do Estado Social como o conhecíamos, tudo isso somado, está a gerar no país uma profunda revolta, e mais grave ainda, está a unir as esquerdas, num ódio e num propósito comum, contra o Governo.
É sempre assim: quando a direita vira demasiado à direita, a esquerda une-se. Contudo, em Portugal, isso nunca aconteceu desde o 25 de Abril. A direita portuguesa, e nela incluo o CDS e o PSD, nunca tinha virado tanto "à direita" como no presente. Nem a AD de Sá Carneiro, ou as de Marcelo ou Durão Barroso; nem o PSD de Cavaco, tinham sido tão "à direita" enquanto foram governos.
No passado e durante quase 40 anos de democracia, houve sempre nas direitas portuguesas, sobretudo quando estavam no Governo, importantes políticas sociais-democratas no PSD e democratas-cristãs no CDS, que impediam a governação de virar demasiado "à direita". E certamente por isso, a união das esquerdas nunca se deu. Com a excepção de acordos pontuais, por exemplo na Câmara de Lisboa, nunca o PS se uniu ao PCP e ao Bloco para governar o país.
Agora, pela primeira vez em 40 anos, isso pode mudar. Pé ante pé, as esquerdas estão-se a unir. A canção Grândola Vila Morena será, daqui para a frente, uma espécie de guarda-chuva debaixo do qual se dará a união das esquerdas. Qualquer dia, veremos Seguro, Semedo, Jerónimo, Arménio Carlos, e muitos outros, também a cantarem a Grândola à primeira oportunidade, e isso terá um profundo significado simbólico.
Ou muito me engano, ou a grande consequência do desastre económico que Passos e Gaspar provocaram, será um governo de Esquerda, onde pela primeira vez veremos sentados o PS, o PCP e o Bloco. O desastre que a direita gerou vai provocar uma união à esquerda, e os mais fervorosos apoiantes de Passos, de Gaspar e da austeridade, terão de engolir pela boca a baixo uma frente de esquerda como nunca houve em Portugal.
É sempre assim, no mundo inteiro. Quando a direita vira demasiado à direita, a esquerda cresce a seguir, e muito.