A alma de um país
Um dos mais graves erros deste governo foi ter aumentado o IVA na restauração, passando-o para a taxa máxima de 23 por cento. A restauração é uma parte da nossa alma enquanto nação. Como qualquer povo latino, adoramos comer, adoramos estar à mesa, adoramos ir à procura de novos prazeres em novos locais, adoramos tascas e barzinhos, adoramos cafés e pastelarias. Comer, o ato em si, mas também o ato social de comer, o que ele implica de reunião, de encontro com os outros, de ligação aos amigos, aos companheiros de trabalho, à família, faz parte da nossa forma de viver, do nosso "lifestyle".
Não há português que não adore um bom peixinho grelhado, umas prateadas sardinhas, um consistente bife com batatas fritas a boiar em molho, uns delicados filetes, umas robustas favas, um multidisciplinar cozido ou uma rica caldeirada. Nós adoramos comer, acompanhar a comida com um saboroso vinho ou uma fresca cerveja, enquanto falamos dos amores e desamores dos que nos rodeiam, da telenovela de ontem, do jogo que aí vem, ou da última intriga que corre, como um foguete descontrolado, no nosso local de trabalho. Para nós, comer é viver, é à mesa que nascem risos e gargalhadas, é à mesa que se muda o destino do país em dez segundos, e muitas vezes é à mesa que nos apaixonamos por aqueles olhinhos que, brilhantes, nos sorriem.
É por isso que a "restauração" não é um sector de actividade qualquer. A "restauração" somos nós, é Portugal que vive todos os dias, é a nossa forma preferida de existir em conjunto. Os ingleses e os irlandes encontram-se nos pubs, nós nos restaurantes, e só nos levantamos da mesa por bons motivos. Para levantar da mesa muitos portugueses é preciso um "bulldozer", ou uma grua, que muitas vezes tem duas pernas e é bem gira, ou está em casa à nossa espera, deitadinha na cama. E é por essas e por outras que a "restauração" tem de ser estimada por nós, enquanto sociedade. Sufocar a "restauração" é, como dizia Souto Moura, tirar o "oxigénio de uma sala que está cheia", é causar um dano a uma parte da nossa alma.
Enquanto portugueses, devemos orgulhar-nos da nossa "restauração", protegê-la, incentivá-la, porque ela é um bocado de nós, e ainda por cima um bocado bom!
No meio desta crise grave, há sectores "estratégicos" que devem ser estimados e ajudados, não só porque geram mais emprego, mas sobretudo porque nos dão orgulho e auto-estima. O turismo, a restauração, o desporto, o mar, não são apenas meros "sectores de actividade", são pilares essenciais da nossa identidade, e é por isso que se transformaram também em fundações da nossa economia. Se não os tratarmos bem, sobretudo nestes momentos de crise, castigamo-nos a nós próprios, chicoteamo-nos nas costas, como os loucos nas procissões das Filipinas, e ficamos mais feridos e mais pobres de espírito.
Quando um estrangeiro vem a Portugal, é bom que goste de comer por cá, saboreando as nossas riquezas gastronómicas, é bom que goste de descobrir hotéis e pensões onde é bem tratado, é bom que goste de jogar golfe ou ver uma entusiasmante partida de futebol, é bom que aproveite quilómetros e quilómetros das melhores praias da Europa. Por mais que a austeridade seja necessária, é preciso apoiar a nossa identidade especial, aqueles que são os "sectores" onde somos bons e geramos riqueza. A cegueira deste governo, que pulverizou com Iva vários desses sectores, é uma triste visão do futuro, e é um atentado à nossa maneira de viver. Era essencial que isso mudásse, mas da maneira que estão as coisas...