Salários: cortes ou atrasos?
Antigamente não havia cortes salariais ou dos subsídios. Antigamente, havia atrasos salariais, e isto diz muito sobre o quanto mudaram as nossas sociedades. Um atraso era um percalço, um azar, uma contrariedade. É claro que era também um sintoma das dificuldades das empresas, um sinal dos maus tempos económicos, uma realidade que desassossegava quem trabalhava e não recebia. Mas, pelo menos havia nos "salários em atraso" uma qualidade: a sua natureza transitória e passageira. Os salários atrasavam-se mas, mais mês menos mês, acabavam por chegar às pessoas. É claro que, para quem vivesse à pele, a precisar do dinheiro, um atraso produzia enormes sofrimentos. Contudo as pessoas acreditavam que, num futuro próximo, daqui a dois ou três meses, as coisas iam melhorar outra vez, e os salários atrasados iam finalmente chegar. Os "salários em atraso" eram como aqueles amigos que às três da tarde ainda não tinham chegado para o almoço, e já a comida rareava e todos estavam preocupados com o seu paradeiro (isto era antes de existirem telemóveis, claro), mas eles lá acabavam por chegar, com um ar comprometido ou um pouco envergonhado, e a harmonia do mundo recompunha-se. Porém, isso acabou. Agora, não há "salários em atraso", agora há cortes salariais. De um dia para o outro zás, desaparece quinze por cento, ou desaparecem os subsídios, e o pior de tudo é a sensação de que o corte é para sempre, definitivo, e aqueles euros nunca mais irão regressar à nossa vida. É uma situação bem mais dura do que os atrasos porque tem uma promessa de um futuro pior. Deixa de haver esperança numa melhoria e assim é como ter a certeza que os amigos nunca vão chegar ao nosso almoço. O mundo ficou bem mais desagradável com os cortes.