Camões no Purgatório
Há uns dias atrás, estava Camões no Purgatório sentado a um canto, com o cotovelo pousado no joelho e o punho a segurar o queixo, de cara fechada e sombria. No seu habitual passeio diário, passou por ele John Fitzgerald Kennedy (JFK para os amigos), antigo presidente americano, e perguntou:
- Então, pá, que é essa cara?
Camões encolheu os ombros, mas não disse nada. JFK, sempre dado a pequenas provocações, avisou-o:
- Olha que essa posição de mão no queixo, pensativo, à Rodin, não é nada original. E sabes como o gajo é picuinhas, vai ficar irritado se te vir a copiares a sua obra-prima.
Camões desfez de imediato a postura, suspirou e explicou-se:
- Estou farto que me citem fora do contexto. É uma mania dos portugueses. A gente escreve uma obra prima da literatura lusitana, e depois tem de aturar, ao longo de séculos, gente que usa e abusa das nossas palavras!
JFK riu-se:
- A quem o dizes! Mas, quem é que usou mal os teus versos?
Camões encolheu de novo os ombros:
- Não é ninguém de importância, é o primeiro-ministro actual, um tal de Passos Coelho. Como deves imaginar, eu já vi muitos a mandar em Portugal, já aqui estou há séculos. Mas, não deixo de ficar incomodado. Sempre que eles fazem disparates, lá aparecem as citações do velho poeta zarolho! Lá aparecem os meus "ventos", as minhas "tempestades", como se eu estivesse do lado deles, ou tivesse escrito o que escrevi a pensar neles...
JFK, brincalhão, provocou-o outra vez:
- É pá, é a imortalidade, é esse o prémio! A malta escreve uma coisa e o nosso povo fica a repetir isso pela eternidade fora! Não é razão para ficar deprimido!
Camões percebeu o ponto de vista dele e admitiu:
- Tens razão, um homem não se pode enervar com estas coisas. Mas, caramba, escrevi tanta coisa bonita e eles só se lembram das tormentas, do Velho do Restelo...Livra, que neura de gente!
JFK sentou-se ao lado dele. Reparou que o olho direito de Camões continuava ausente, e lamentou que não houvesse maneira de alguém concertar as mazelas das pessoas. Ele, por exemplo, tinha ainda a cabeça furada por uma bala, o cérebro à mostra, um horror. A parva da Jaqueline nem se chegava ao pé dele, agora que tinha um nome grego.
- Olha...é Camões, não é?
Camões acenou com a cabeça, confirmando o seu nome. JFK prosseguiu:
- Comigo é o mesmo. Lembras-te do que eu disse no meu discurso de tomada de posse, quando fui investido Presidente?
Camões desculpou-se, era velho demais, não se lembrava. JFK arqueou as sobrancelhas, achou estranho, mas não comentou aquela falha cultural grave do português.
- Aquela célebre frase "não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, pergunta antes o que tu podes fazer pelo teu país", sabes?
Camões animou-se, conhecia a frase:
- Sim, claro. Mas isso é teu? Pensei que fosse do Churchill! Do gajo do charuto, esse é que tinha jeito para tiradas dessas.
JFK ficou paralisado de raiva um segundo, mas rapidamente se disciplinou. Por ordem de Deus, tinha frequentado na semana anterior um curso de "Contenção Emocional", para não ser tão incontinente nas suas paixões. Respirou fundo e esclareceu:
- Não, essa frase é minha, 100 por cento.
Depois tossiu:
- Bem, aqui só entre nós, na verdade a frase não é minha, mas do gajo que escrevia os meus discursos. Mas, isso agora não interessa. O que eu te queria dizer é que também me passam a vida a citar fora do contexto. Sempre que algum político quer impor sacrifícios excessivos ao seu povo, lá vem a minha citação, para justificar tudo. É uma aberração. Na verdade, aquela citação foi feita com uma intenção: começar a preparar os americanos para irem lutar para o Vietnam...Estás a perceber? O que "tu podes fazer pelo país", ir à guerra...Era evidente não era?
Camões não achava assim tão evidente, mas não o quis contrariar. Afinal, JFK podia enviar pessoas para uma guerra, poder que ele nunca tivera.
Entretanto, distraídos como estavam, os dois não se deram conta que haviam chegado perto deles duas personagens. Uma era Martin Luther King, outra era Churchill, o tal do charuto. Este último, ao ouvir a justificação de JFK, murmurou para Luther King:
- Vá lá, não estavam a falar de mulheres...
Camões e JFK olharam os dois ao mesmo tempo para cima e viram a dupla recém-chegada. Saudaram-se todos, e Camões justificou-se:
- Estavamos a falar de citações nossas retiradas do contexto.
Churchill deu umas baforadas no charuto e sorriu:
- O reverendo King que me perdoe, mas fazia mais sentido estarem a falar de mulheres. Um escreveu sobre a Ilha dos Amores, o outro viveu nela a vida toda!
Camões e JFK abriram um enorme sorriso, mas o antigo presidente americano viu que Luther King estava sério, e desfez o sorriso.
Churchill prosseguiu:
- Mas, o campeão das frases fora de contexto é aqui o reverendo, não é?
Luther King franziu a testa, sem compreender. Churchill explicou-se:
- É cada maluco a gritar por aí "I Have a Dream!!!" Dá para tudo, não é verdade? Até houve um gajo, aqui há uns anos, que fez uma música a gritar "I Have a Dream, a Wet Dream"!
Camões, JFK e Churchill deram uma violenta gargalhada e obviamente que Martin Luther King se afastou, decepcionado, convicto de que gente daquela laia não tinha emenda, nem no Purgatório. Depois de limparem as lágrimas de tanto rirem, Camões e JFK revelaram a Churchill o início da conversa, o uso de Passos Coelho dos Lusíadas, para justificar aos portugueses o estado do país.
Churchill escutou-os calado, e no final olhou para Camões e perguntou:
- Tens maneira de comunicar com o teu povo?
Camões observou-o espantado:
- Comunicar como?
Churchill sorriu:
- Sms, Facebook, Twitter, qualquer coisa moderna...É fácil, crias uma página na net e deixas lá ideias, como se fosses tu mesmo a falar directamente. Não imaginas o número de pessoas que me lê!
Os outros estavam incrédulos. Churchill era o maior, um espertalhão, conseguia tudo o que queria. Mesmo quando fazia qualquer coisa errada, todos gostavam dele. Mas também, desde que Roosevelt se recusava a passear fora de casa, porque estava farto da cadeira de rodas, e desde que há muitos anos Estaline fora despromovido com fúria para o inferno infinito, Churchill reinava no Purgatório, pois era o único naquele jardim que dera uma abada a Hitler.
- Sugiro o seguinte - continuou Churchill - Diz aos portugueses para "lutarem em todas as ruas, em todas as casas, em todos os campos"! Diz-lhes para "nunca se renderem"!
Camões estranhou:
- Lutarem contra quem? Nunca se renderem a quem?
JFK sorriu, Churchill parecia ter sido apanhado em contrapé. Mas o homem do charuto deu nova baforada e afirmou:
- Ao governo, à troika, aos credores, sei lá eu! E o que é que isso interessa? O importante é que a citação seja minha, compreendes Camões? As nossas célebres palavras servem para tudo o que quisermos! É por isso que somos génios e a Humanidade nos vai recordar para sempre!
Piscou-lhe o olho e acrescentou, em voz baixa:
- Os pormenores não são relevantes!
JFK aplaudiu, entusiasmado. Deu o braço a Churchill e ambos se afastaram. Quanto a Camões, permaneceu sentado e um bocado baralhado. Mas pronto, pensou o poeta: aqueles dois eram políticos, estavam habituados a manipular as palavras, tinha de lhes dar um desconto.