Terça-feira, 02.04.13

Um homem muito ciumento

Certa noite ele acordou-a com um gesto brusco e desagradável. Ela mexeu-se na cama, com a cara amarrotada pelo sono, e olhou para ele, espantada:

- O que foi?

Eram quatro da manhã, chovia a cântaros lá fora, e um arrepio de medo e de angústia percorreu-lhe a espinha. Puxou o lençol para cima, enrolou-se nele e insistiu:

- O que é que se passa?

Ele estava com os olhos semicerrados a observá-la. Na penumbra, parecia zangado. De repente, sentou-se na cama e disse:

- Tu tens um caso...Andas com outro.

Ela olhou-o, impávida. O que era aquilo? O que lhe dera para, a meio da noite, acordar de repente a dizer disparates? Franziu a testa e perguntou:

- Está tudo bem?

Ele cerrou os dentes, irritado. Ela não ligara ao que ele dissera, e isso é que era importante. 

- Eu sei que me andas a trair.

Ela nem queria acreditar, e ele a insistir! Teria sido um sonho, um pesadelo nocturno? Caramba, o homem tinha quase quarenta anos, não tinha idade para isso! Ou tinha? Será que havia uma idade a partir da qual se deixava de ter pesadelos, ou eles continuavam para sempre?

- O que é que se passa contigo? Tiveste um pesadelo?

Ele não sorriu. Levou a mão à cabeceira e acendeu um cigarro. Ela enervou-se. Odiava que ele fumasse na cama, odiava o cheiro do cigarro no quarto. 

Então ele disse:

- O meu pesadelo és tu. 

Ela ficou em silêncio uns segundos, e depois veio ao de cima o seu lado maternal. Ele era como os miúdos, necessitado de mimo depois dos pesadelos, para voltar a adormecer. Ela ignorou a sua última acusação e tentou acalmá-lo:

- Isso deve ter sido jantar. Há quem diga que o saké provoca pesadelos...

Ele esboçou um sorriso e resmungou:

- Eu não bebi saké...

Ela ficou intrigada. Ontem à noite, ele dissera que ia jantar fora com uns amigos a um restaurante de sushi, teria mentido?

- Tu é que disseste que ias jantar sushi.

Ele enervou-se:

- Não desvies a conversa...Eu descobri que tens um caso, andas com outro. 

Foi aquele "descobri" que a enervou. O que é que ele tinha "descoberto" se não havia nada para "descobrir"? No passado, com outros namorados, ela fora uma ou duas vezes infiel, mas agora não era. Sim, tinha amigos que lhe enviavam convites tentadores, mas não aceitara nenhum há mais de um ano, desde que começara namoro com ele. Gostava dele, e as coisas iam bem até há umas semanas, quando ele começara a dar sinais estranhos, de irritação permanente com ela. Criticava-a muito, por tudo e por nada, e já tinham existido algumas discussões desagradáveis. Mas, nada como isto. Isto era coisa de psicopata, acordar a meio da noite com pesadelos, a acusá-la de infidelidade!

- Que disparate é esse? Não deves estar bom da cabeça!

Irritada, ela levantou-se para ir à casa de banho, e quase por instinto, cometeu um erro, ao pegar no telemóvel, para ver se tinha mensagens. Ele atacou de imediato:

- Vais mandar-lhe um sms, a dizer que foste descoberta?

Ela ficou imóvel, a olhar para ele, sem saber o que dizer. Ele rosnou:

- Há quanto tempo é que isso dura?

Ela piscou os olhos. Aquilo era mesmo grave, ele estava mesmo convencido da sua verdade. Na cabeça dele, havia uma ideia muito enterrada, e ela não sabia porquê. Respirou fundo e afirmou:  

- Não sei mesmo de que é que estás a falar.

Nessa noite, ela teve de ouvir mais acusações, mas dentro dela as coisas já estavam resolvidas. Aquele homem não era bom da cabeça, não o queria para ela. Um homem que acorda a meio da noite com medo dos seus próprios fantasmas não é boa companhia. 

publicado por Domingos Amaral às 11:56 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Quarta-feira, 09.01.13

Ainda existem pessoas fiéis?

Uma mulher de quem gosto muito costuma dizer que as pessoas que se casam não deviam jurar fidelidade, porque ninguém vai cumprir essa jura.

Os homens já há dez mil anos que não a cumprem, e as mulheres, metade também há diz mil anos que não a cumpre, e a outra metade deixou de cumpri-la de há vinte anos para cá.

A promessa de fidelidade, diz essa realista mulher, é portanto inútil e enganadora, pois só serve para nos iludirmos. Um dos dois será infiel, essa é que é essa, e a única dúvida é saber qual será o primeiro. 

Sendo assim, o que devíamos era fazer uma promessa diferente. Deveríamos prometer que íamos tentar não ser infiéis. E só por cinco anos, de cada vez. Prometes tentar não ser infiel nos próximos cinco anos? Sim, prometo. Daqui a cinco anos veremos.

É que, nos dias que correm, a infidelidade mudou muito, já não é a mesma velha senhora do passado. A infidelidade está mais magra, mais reduzida no seu conceito. Coisas que antes eram consideradas infidelidade, hoje não produzem mais que um mero encolher de ombros.

Veja-se as fantasias, por exemplo. As mulheres que fantasiam em segredo com o Brad Pitt, ou os homens que suspiram à primeira visão da Juliana Paes, estão a ser infiéis, mas os seus sonhos são inofensivos, banais e nada graves. Metem-se os cornos na imaginação, mas "no passa nada".

Depois, há também aquela infidelidade social superficial, que incluiu a troca de olhares furtivos, as conversas picantes, os sms cheios de segundas intenções. É muito habitual nos nossos dias: as pessoas comem-se com os olhos, enviam evidentes e permanentes sinais, mas é tudo teatro, e os contatos íntimos não passam de uma mão nas costas, as palavras não são mais que uma piadinha permanente, que tudo deixa em suspenso.

É a infidelidade em "stand-by", no "pause", mas é muito comum nos nossos dias, e é até socialmente aceite e incentivada. Quem não for brincalhão e muito sexy, é visto como pouco "cool".

Infelizmente para muitos, estas brincadeiras, à superfície inofensivas, podem despoletar incêndios graves. Há maridos e esposas que se passam da cabeça só por apanherem um comentário mais ousado no Facebook. Há zaragatas e ranger de dentes, mas se realmente estiver apenas em "stand by", essa infidelidade só mói, não mata. Ninguém se separa só porque há um smile duplo no telemóvel do marido ou da mulher...

Também é cada vez mais aceite a infidelidade Easy Jet. Um desvario pontual, uma noite de loucura, se tiver acontecido no estrangeiro, a mais de 400 km de casa, não é causa para tragédias. A infidelidade Easy Jet, além de ser fácil de negar, é fácil de ignorar. Ninguém a viu, ninguém a lembra.

O que é doloroso aceitar é um par de cornos social, em dez mil anos não se avançou nada nestas coisas. O que custa, além da traição, é o preço da vergonha, as amigas e os amigos a comentarem, a humilhação em grupo. A infidelidade, quando é pública, nunca se consegue privatizar, como a TAP. Mas são raros, é verdade, os que conseguem evitá-la. 

Portanto, o que se devia era jurar que se vai tentar não ser infiel. Prometes que vais tentar não ser infiel? Sim, prometo. E a promessa devia ser renovada a cada cinco anos. Prometes mais cinco anos? Sim, prometo tentar mais cinco anos. Mesmo assim, era capaz de não ser fácil cumprir, mas pelo menos tentávamos.  

  

publicado por Domingos Amaral às 15:23 | link do post | comentar | ver comentários (5)
 

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