Alcântara pela manhã
De manhã, entre as oito e as nove, Alcântara é um caos, uma selva urbana mais dura e perigosa que o Amazonas. Do Calvário ao Alto de Santo Amaro, há milhares de carros a deixar crianças nas escolas ou no liceu Raínha D. Amélia. Há dezenas de enormes autocarros da Carris, apinhados de estudantes, a bufarem dos travões. Há imensas camionetas mal estacionadas, à porta de lojas, pastelarias, supermercados, em cargas ou descargas. Há carros estacionados em segunda fila, que parecem esquecidos do tempo e do mundo. Há peões a saltitar, acelerados e de olhar esgazeado, nas passadeiras ou fora delas, arriscando a vida em corridas desesperadas por um objectivo qualquer.
E depois há filas intermináveis, bloqueios do tráfico, buzinadelas fortíssimas, gritarias e protestos gerais, carros a executarem "slaloms" gigantes, mais rápidos do que um esquiador olímpico a descer uma montanha de neve raspando pelas bandeirinhas. Por vezes, há mesmo conflitos abertos. Gente que perde a cabeça, acelera nas passadeiras, pára enfurecida, sai do carro aos urros, pega-se à pancada com estranhos por causa de uma contravenção fútil.
Alcântara de manhã é a loucura e o que espanta mesmo é que, no final, há poucos acidentes. Como as ruas são apertadas e com demasiados cruzamentos e passadeiras, ninguém consegue circular depressa naquela absurda confusão e portanto todos podem travar a tempo. Não se evitam os sustos, mas pelo menos evitam-se acidentes ou atropelamentos. É um caos arrepiante e insuportável, mas apesar de tudo não tem havido mortos e feridos, o que acaba por ser a única vantagem daquela selva empedrada e exasperante.