A Europa é uma nave de loucos
Ontem, num site americano, aparecia uma fotografia da ilha de Santorini, como a que aqui mostro, com a seguinte legenda: "Daqui a uns anos, Santorini continuará linda e grega e no mesmo local. E a União Europeia, ainda estará de pé?"
Raramente se viu semanas onde grassou tanta estupidez, tanta pesporrência e tanta inflexibilidade nas altas instâncias europeias, gregas ou internacionais.
Parecem todos loucos, como se não soubessem, nem quisessem saber, que têm nas suas mãos o futuro de milhões de pessoas.
Ouve-se o que dizem, e não se acredita.
A sra Lagarde, por exemplo, depois dos sorrisinhos e do bater de pestanas de corça com que saudou a chegada do galã Varoufakis, perdeu a compostura, vá-se lá saber porquê, e com a ira das meninas despeitadas, exigiu "adultos na sala". E, de caminho, sabotou o referendo grego, dizendo que a proposta dos credores já não era válida...
O Sr. Schauble, guru dos germanófilos lusos, foi dos primeiros a apoiar publicamente um referendo na Grécia, há apenas duas semanas. Ainda se lembram?
Mas, mal o dito foi marcado pelos gregos, desatou a apoucar a ideia que antes suportou, e deu instruções ao seu povo para levar mais euros para as banhocas nas ilhas gregas, não fossem os multibancos dar o berro.
A Sra Merkel, sempre impecável nos seus conjuntos multicolores, sobrevoa a Europa e diz que os gregos tiveram "ofertas extraordinariamente generosas", como se pedir a um povo que corte na despesa e suba impostos fosse generosidade!
Não passa pela ideia desta matrona que, depois de cinco anos de maravilhosa "generosidade" europeia, os gregos já citem o seu provérbio "quem já está molhado, não tem medo da chuva".
Já o inquieto holandês de nome impronunciável, Djess qualquer coisa, com os seus óculos fora de moda, apanhou uma fúria a dirigir o Eurogrupo e expulsou da sala a delegação grega, um ato inqualificável numa união política. E, claro, foi mais um a tentar sabotar o referendo, decidindo terminar o programa de resgate logo ali.
Por cá, o senhor de Massamá (que se esqueceu de pagar a segurança social durante uns anos), dá lições de moral aos gregos, e o seu governo é eleito pelo Financial Times como o mais duro das negociações, e o que é pior, provavelmente ele sente orgulho nisso.
Uma miopia trágica, que mostra que Passos não entendeu o essencial: quanto mais dureza for pedida à Grécia, mais o caldo se entorna, e o próximo país que vai sentir a pressão é Portugal.
O sr. primeiro-ministro, na sua teimosa inconsciência, parece um porquinho feliz, a caminhar para o matadouro.
Obviamente, este desvario generalizado atinge também os gregos.
O governador do seu Banco Central, por exemplo, publicou semanas atrás um relatório onde falava numa "catástrofe iminente", fazendo uma claríssima chantagem sobre o seu próprio governo.
E Tsipras também não escapa ao delírio coletivo.
Numa sexta, regressado a Atenas, vociferava contra o FMI "criminoso" e anunciava "um rotundo não aos credores"; mas logo na segunda-feira seguinte apresentava medidas de austeridade e subidas de impostos, deixando em brasa a ala esquerda do Syriza.
Quando tudo parecia encaminhado para um acordo, regressou de novo à Grécia e anunciou, sem avisar os parceiros de negociação, que iria marcar um referendo!
Tsipras é um em Bruxelas e outro em Atenas, lembra um maridinho tonto, que muda de opinião de cada vez que chega a casa, ao ouvir os berrinhos histéricos da esposa.
Ainda esperei que alguns, mais calmos e de bom senso, conseguissem meter água nesta fervura. Mas também esses me decepcionaram.
O pacholas do Juncker, que quer passar por bonzão mas é incapaz de meter a malta na ordem, choraminga as suas dores em público, e diz que os gregos têm de saber a verdade, insinuando que Tsipras é mentiroso.
Para presidente da Comissão Europeia, parece-me excessivo. Eu sei que a política europeia é florentina, e os gregos por vezes bizarros, mas convém não esquecer que a troika não aprovou quase nenhuma das propostas que a Grécia fez na segunda-feira...
Negociamos e negociamos, para no fim aprovar o que eu quero, é a ideia que se fica depois de escutar Juncker.
E nem vale a pena falar do fraquíssimo Hollande, um mero apêndice que por ali anda, e o verdadeiro exemplo de como os socialistas europeus se tornaram insignificantes a partir do momento em que aceitaram o princípio germânico da austeridade.
Em resumo: andam todos de cabeça perdida (admitindo que têm cabeça), frustrados e zangados uns com os outros, com a acrimónia típica de um casal desavindo que é incapaz de se entender sobre as divisões das finanças e até a custódia dos filhos.
Porém, a mim espanta-me mais a inflexibilidade europeia do que impetuosidade grega.
Será que ninguém, nem por um momento se lembrou que pedir a pobres para se sacrificarem mais uma vez é um excesso, é bullying económico?
Será que ninguém entende que, depois de cinco anos de profundos sacrifícios, pedir a um povo orgulhoso, como o grego, que se humilhe e sacrifique de novo, é uma receita para o desastre?
Será que ninguém compreende o temor do Sr. Obama, que é atirar a Grécia para os braços do maldoso Putin, criando um corredor de tragédias, que vai da Síria à Ucrânia?
Com a cegueira institucional que caracteriza as grandes burocracias internacionais, o FMI, a UE, o BCE, recusam-se, ao fim de cinco anos de crises infindáveis, a colocar uma questão essencial: e se estivermos errados?
E se estes ajustamentos, dentro de uma união monetária, não forem a melhor forma de resolver o problema de excesso de dívida soberana?
Isto, que muitos e eminentes economistas vêm dizendo há anos, é dúvida que nem sequer passa pela cabeça das luminárias europeias, e por isso estamos onde estamos, à beira do precipício.
A velha moral do "paga o que deves", que enche a boca de tanto português indignado, não se pode aplicar à bruta aos países, pois como explicou há mais de cinquenta anos o economista Irving Fisher, lança as economias numa prisão.
"Quanto mais pagam, mais devem" é essa a terrível armadilha da dívida. Para pagar a dívida fazem austeridade, caem na recessão, e o rácio dívida/PIB em vez de descer, sobe.
A Grécia é o perfeito exemplo dessa perversa situação, depois de dois memorandos e um perdão parcial, a dívida continua a crescer porque o PIB continua a descer.
Mas esta inexorável e dura lei da macroeconomia nem por um momento faz hesitar os grandes moralistas cá do burgo, que falam dos gregos como antigamente se falava da escória e da ralé. Dá vontade de rir, ouvir certos portugueses a apelidar os gregos de preguiçosos, corruptos e outros mimos no género.
Quem oiça o que certos tugas dizem e escrevem, pode até admitir que estão a falar do Bangladesh ou do Burkina Faso. "Estado falhado", "não pagam impostos", "aldrabões nas contas", é maravilhosa a cascata de insultos com que os tugas brindam a Grécia.
Poucos lá foram, e muito poucos conhecem a história da Grécia, mas ao virar de cada esquina em Portugal há um especialista em assuntos gregos, em bolhas e em "viver acima das suas possibilidades".
E se há alvo principal do desdém luso, ele é Varoufakis e a sua moto e mochila. Como se fosse uma heresia ele não chegar como os outros, de BMW de vidros fumados pago a peso de ouro por um qualquer Estado não falhado.
Muitas afirmações se podem fazer sobre o Syriza, que é radical, de esquerda, etc, etc. Mas há pelo menos três coisas de que ninguém pode acusar o Syriza.
A primeira é sobre a dívida grega. Durante os últimos vinte anos, muitos governos erraram na Grécia, e na Europa inteira, mas a colossal dívida do país não é da responsabilidade do Syriza. Não foi ele que a criou, nem que a geriu tão mal.
O Syriza tem as mãos limpas de dívida e isso dá-lhe alguma legitimidade adicional.
A segunda é que ninguém pode alegar surpresa sobre as posições do Governo grego. Tsipras foi eleito pelo povo para acabar a austeridade, e o que deseja é cumprir.
Eu sei que, por essa Europa fora, nos desabituámos de políticos que desejam fazer o que prometeram. Principalmente em Portugal, depois de termos sido enganados pelas promessas de Durão, Sócrates ou Passos, que mal se viram no poder fizeram o contrário do que anunciaram em campanha.
Mas, lamentavelmente para os bem-pensantes, eis que surge na Europa um governo que quer cumprir o que prometeu aos eleitores, e logo lhe caem todos em cima, querendo obrigá-lo a torcer-se todo, em falsidades e colaboracionismos.
Por fim, há uma capacidade no Syrira que admiro, que é coragem. Quantos governos seriam capazes de bater o pé a forças tão poderosas? Quantos levariam até ao fim as suas ideias perante o tapete de bombas com que são fustigados?
Que exista finalmente um governo que não se verga às infames e falhadas troikas, devia ser motivo de espanto e admiração, e não de desprezo ou mesmo ódio.
É certo que a coragem syriziana é um bocado "kamikaze", mas esperemos por domingo para perceber se as bravatas retóricas de Tsipras convencem os gregos a votar no não.
Se isso acontecer, e se até lá não houver um pingo de lucidez nos europeus, e eles não recuarem nas absurdas exigências que fazem à Grécia, a Europa começará esta semana a sua desintegração.
Merkel, Schauble, Lagarde, Hollande, Djesselbom, Passos, Rajoy, serão recordados para sempre como fanáticos da austeridade, e irão entrar na Histórica como a maravilhosa geração que começou a dar cabo do euro.
Quanto a Tsipras, também dificilmente escapará. Se o sim vencer, morre como político.
Contudo, se o não ganhar, terá apenas uma vitória de Pirro (que por acaso era um rei grego). Vencerá a batalha contra os credores, mas lançará a Grécia num caos imprevisível, onde durante meses só haverá choro e ranger de dentes.
Ele diz que votar no não é aumentar o seu poder negocial, e diz bem. Porém, alguém acredita que a Europa vai fazer um "flick-flack" à retaguarda, e dar-lhe o que ele quer?
Seria excelente, mas é um sonho em que convém não acreditar muito.
Talvez Tsipras possa dizer, como disse Pirro depois da sua famosa batalha: "Mais uma vitória como esta, e estou perdido".
A única consolação que me resta no meio desta triste saga, é saber que, aconteça o que acontecer, a ilha de Santorini continuará no mesmo local, como há milhares de anos, linda e grega.
Já quanto à União Europeia, não sei não, como dizem os brasileiros.