Terça-feira, 02.04.13

Um homem muito ciumento

Certa noite ele acordou-a com um gesto brusco e desagradável. Ela mexeu-se na cama, com a cara amarrotada pelo sono, e olhou para ele, espantada:

- O que foi?

Eram quatro da manhã, chovia a cântaros lá fora, e um arrepio de medo e de angústia percorreu-lhe a espinha. Puxou o lençol para cima, enrolou-se nele e insistiu:

- O que é que se passa?

Ele estava com os olhos semicerrados a observá-la. Na penumbra, parecia zangado. De repente, sentou-se na cama e disse:

- Tu tens um caso...Andas com outro.

Ela olhou-o, impávida. O que era aquilo? O que lhe dera para, a meio da noite, acordar de repente a dizer disparates? Franziu a testa e perguntou:

- Está tudo bem?

Ele cerrou os dentes, irritado. Ela não ligara ao que ele dissera, e isso é que era importante. 

- Eu sei que me andas a trair.

Ela nem queria acreditar, e ele a insistir! Teria sido um sonho, um pesadelo nocturno? Caramba, o homem tinha quase quarenta anos, não tinha idade para isso! Ou tinha? Será que havia uma idade a partir da qual se deixava de ter pesadelos, ou eles continuavam para sempre?

- O que é que se passa contigo? Tiveste um pesadelo?

Ele não sorriu. Levou a mão à cabeceira e acendeu um cigarro. Ela enervou-se. Odiava que ele fumasse na cama, odiava o cheiro do cigarro no quarto. 

Então ele disse:

- O meu pesadelo és tu. 

Ela ficou em silêncio uns segundos, e depois veio ao de cima o seu lado maternal. Ele era como os miúdos, necessitado de mimo depois dos pesadelos, para voltar a adormecer. Ela ignorou a sua última acusação e tentou acalmá-lo:

- Isso deve ter sido jantar. Há quem diga que o saké provoca pesadelos...

Ele esboçou um sorriso e resmungou:

- Eu não bebi saké...

Ela ficou intrigada. Ontem à noite, ele dissera que ia jantar fora com uns amigos a um restaurante de sushi, teria mentido?

- Tu é que disseste que ias jantar sushi.

Ele enervou-se:

- Não desvies a conversa...Eu descobri que tens um caso, andas com outro. 

Foi aquele "descobri" que a enervou. O que é que ele tinha "descoberto" se não havia nada para "descobrir"? No passado, com outros namorados, ela fora uma ou duas vezes infiel, mas agora não era. Sim, tinha amigos que lhe enviavam convites tentadores, mas não aceitara nenhum há mais de um ano, desde que começara namoro com ele. Gostava dele, e as coisas iam bem até há umas semanas, quando ele começara a dar sinais estranhos, de irritação permanente com ela. Criticava-a muito, por tudo e por nada, e já tinham existido algumas discussões desagradáveis. Mas, nada como isto. Isto era coisa de psicopata, acordar a meio da noite com pesadelos, a acusá-la de infidelidade!

- Que disparate é esse? Não deves estar bom da cabeça!

Irritada, ela levantou-se para ir à casa de banho, e quase por instinto, cometeu um erro, ao pegar no telemóvel, para ver se tinha mensagens. Ele atacou de imediato:

- Vais mandar-lhe um sms, a dizer que foste descoberta?

Ela ficou imóvel, a olhar para ele, sem saber o que dizer. Ele rosnou:

- Há quanto tempo é que isso dura?

Ela piscou os olhos. Aquilo era mesmo grave, ele estava mesmo convencido da sua verdade. Na cabeça dele, havia uma ideia muito enterrada, e ela não sabia porquê. Respirou fundo e afirmou:  

- Não sei mesmo de que é que estás a falar.

Nessa noite, ela teve de ouvir mais acusações, mas dentro dela as coisas já estavam resolvidas. Aquele homem não era bom da cabeça, não o queria para ela. Um homem que acorda a meio da noite com medo dos seus próprios fantasmas não é boa companhia. 

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Quarta-feira, 13.02.13

O homem que se esqueceu (uma única vez!) do Dia dos Namorados

Aquilo nunca lhe tinha acontecido na vida, mas dessa vez esqueceu-se mesmo do Dia dos Namorados. No passado, com outras namoradas ou mesmo com a atual, nunca se esquecera. Comprava sempre uma "lembrancinha", como ele dizia a brincar aos amigos, só para mostrar às raparigas que gostava delas.

Mesmo que já estivesse com a cabeça noutra, era melhor comprar um presentinho, ser simpático, para não as decepcionar naquele dia. É que, apesar do Dia dos Namorados não ter um significado especial para ele, a verdade é que para as mulheres parecia ser um dia fundamental, com um estatuto semelhante ao Aniversário Dela e ao Natal!

Porém, naquele ano esqueceu-se. Eles já namoravam há seis anos, e estavam numa espécie de limbo, entre a possibilidade de casarem em breve, sempre vaga, e a possibilidade de o namoro perder gás, raramente falada. Talvez isso tenha sido importante. Nesse dia chegou a casa (eles já viviam juntos no apartamento dele), só pousou o casaco e depois foi dar-lhe um beijo, mas não disse nada mais, a não ser um vago:

- Apetece-me tomar um duche.

Ela ficou a olhar para ele, intrigada. Estaria ele a gozá-la? Teria o presente no bolso do casaco? Teria vindo a casa à hora do almoço, esconder o presente no armário? Decidiu sorrir-lhe e perguntou:

- Correu bem o dia? 

Ele soltou umas frases sem grande sentido, referiu reuniões, conversas, nada de importante. E deve ter mudado de ideias quanto ao duche, pois sentou-se no sofá, acendeu a televisão e começou a ver um jogo de futebol, Liga dos Campeões. Ela nem queria acreditar, mas antes de começar a criticá-lo, coisa de que ele se queixava muito, decidiu respirar fundo e ser paciente.

- Não queres ir jantar fora? Apetecia-me...

Ele nem olhou para ela, mas fez uma careta de enfado e resmungou:

- Hoje? Não podemos ir no sábado? Estou cansado.

Ela arqueou a sobracelha:

- No sábado?

Depois sorriu. Percebeu finalmente que ele se tinha mesmo esquecido do Dia dos Namorados, e ficou subitamente triste. Deu uma meia volta brusca e foi em passo apressado para o quarto, onde se deitou em cima da cama, irritada. Meia hora depois, (sim, só meia hora depois, no intervalo do jogo da Liga dos Campeões!), é que ele apareceu à entrada do quarto, e lhe perguntou o que se passava. Ela nem olhou para ele, mas murmurou:

- Esqueceste que dia é hoje?

Ele ficou abalado, como se tivesse sido apanhado em contrapé. Pensou no aniversário da mãe dela, do pai, da irmã, e também nos aniversários da sua família, mas ninguém fazia anos hoje, nem ela, que só fazia em Setembro.

Ela suspirou, desolada, vendo que ele não se lembrava mesmo:

- É dia dos Namorados.

Nesse momento, ele percebeu que estava tramado, e nem lhe passou pela cabeça mentir. Tinha-se mesmo esquecido, explicou. As reuniões, os telefonemas, o stress, tudo tinha conspirado para ele deixar passar a data!

Durante uns segundos, ela ainda acalentou a secreta esperança de que tudo aquilo não passasse de teatro, e de que ele no fim, já depois de a ter levado ao desespero, a surpreendesse com um presente. Contudo, essas coisas só acontecem nos filmes e às outras, pensou ela, minutos mais tarde.

O seu namorado tinha mesmo esquecido o Dia dos Namorados, e não havia volta a dar! Por mais que ele pedisse desculpa, ela não queria acreditar que isto lhe tinha acontecido. Era uma facada no coração. Logo neste dia, onde se vêem corações por todo o lado, ele tinha cortado o coração dela ao meio. 

Então disse:

- Isto é grave...

Ele ficou meio aparvalhado. Balbuciou mais desculpas, e tentou defender-se. Caramba, não era assim tão grave, ela não devia dar tanta importância, fora apenas um esquecimento, ele podia emendar a mão, que tal irem jantar fora? Ela sorriu, mas foi um sorriso cínico, e quando o viu ele percebeu que estava mesmo tramado:

- Eu não devia dar "tanta importância"? Quer dizer, o meu namorado esquece-se de mim, e eu não devia dar..."tanta importância"? 

Ele ficou calado, atrapalhado, e ela continuou:

- Tu gostas mesmo de mim?

Ele jurou que sim, e disse-lhe que fora apenas uma falha, uma falta de memória. Ela sabia como ele era, distraído. Ela comentou, desapontada:

- Distraído?

Olhou para ele, muito séria, e disse:

- Se calhar, a nossa relação já não faz muito sentido...

Pronto, agora ela queria falar da relação, e ele apostava que daqui a cinco minutos ia falar no casamento, se queriam ou não casar! Óh, meu Deus, porque é que as mulheres eram assim? Porque é que uma mera omissão, uma falha pequena, punha tudo em causa? Será que ela não podia perdoar-lhe este erro?  Ele sugeriu que fossem ao Colombo, ou às Amoreiras, ele comprava-lhe um presente bonito, ela que colocasse um casaco depressa, e depois iriam jantar! 

Ela olhou para ele, e como era boa pessoa e gostava dele, decidiu perdoar-lhe. Ele parecia genuíno, no seu arrependimento pelo esquecimento, e interessado em emendar a mão. Mas, como é que se esquece um esquecimento destes? Como é que se aceita uma coisa destas? Ela não fazia ideia, e ainda hoje não faz. Já passaram vários anos, eles continuam namorados, não se casaram mas também não foi cada um para seu lado, e talvez por isso ela continua a recordar aquele dia em que ele se esqueceu do Dia dos Namorados.

Já ele, continua a pensar que as mulheres adoram receber presentes, seja em que dia for, e obviamente o Dia dos Namorados transformou-se num dia de "expectativa altíssima", cujas esperanças não podem ser frustradas, até porque tal falhanço traz associado o terrível perigo do fim do amor. Portanto, o melhor mesmo é um homem não se esquecer dessas coisas. 

 

PS: E para quem está a precisar de sugestões para presentes do Dia dos Namorados, aqui deixo duas, enviadas por mão amiga. Um relógio da Swatch e umas pulseiras da marca americana Alex and Ani. Mensagens de amor perfeitas e que não nos deixam ficar mal. 

 

publicado por Domingos Amaral às 10:56 | link do post | comentar | ver comentários (5)
Quinta-feira, 20.12.12

Afinal, o mundo não acaba amanhã!

Ontem, o meu filho perguntou-me se eu, na sexta-feira, ia sair à noite. Assim como assim, ele preferia garantir que tinha o pai por perto, caso o mundo acabasse mesmo. Como se o fim do mundo fosse um terramoto, um tsunami, uma explosão enorme, ou qualquer coisa que o pai pudesse, com um piparote, resolver num segundo.

Que as crianças temam o fim do mundo, é compreensível e até é bom, estimula-lhes a imaginação. Agora que milhões de adultos andem a perder tempo com calendários maias e tontarias no género, está para além da minha inteligência. Como se o mundo pudesse acabar num dia determinado, e os maias, há milhares de anos, já o soubessem!

A própria noção de Fim do Mundo é um pouco absurda. É como o Pai Natal: não existe mas todos os dias há deles a passear nas ruas de uma cidade qualquer. Com o Fim do Mundo passa-se algo semelhante: não existe, enquanto conceito geral, mas todos os dias o mundo acaba para as pessoas que morrem.

Para mim, o verdadeiro Fim do Mundo é isso, a morte. Não é nada tão épico como um rebentamento geral, uma mega-terramoto, cometas a cair do espaço. Isso são patranhas de Hollywood, imaginações delirantes, efeitos especiais "spielberguianos".

Suspeito que o fim do mundo não terá nada disso, nem será assim, num dia explícito. Se o mundo tiver de acabar um dia, será de uma forma lenta, demorada, e as pessoas só darão por isso tarde demais, quando já não existirem árvores, nem pássaros, e a água não se puder beber. 

Na verdade, o que as pessoas gostavam era de um Fim do Mundo para colocar no Facebook, uma coisa tipo "furacão Sandy alia-se a terramoto no Haiti e formam conjunto com tsunami na Tailândia"!

É isso que as pessoas querem: um Big Bang Instagram, um maremoto Twitter, em que milhões poderiam colocar fotos de destruição online, contentes por terem sobrevivido e aterrados com o que viam! Não vai acontecer. Ninguém fará um like na página do Fim do Mundo.

Mas, só para descansar o meu filho, na sexta-feira janto em casa. 

publicado por Domingos Amaral às 14:49 | link do post | comentar | ver comentários (4)
Segunda-feira, 05.11.12

De onde nos conhecemos?

Há lá coisa mais constrangedora do que encontrar alguém que temos a certeza que conhecemos mas não nos lembramos de onde? Pior, não nos lembramos do nome! Pois foi isso mesmo que lhes aconteceu, certa noite em casa de uns amigos.

O dono da casa fazia anos e tinha organizado uma festa. Havia talvez quarenta ou cinquenta pessoas, entre a sala, a cozinha e o terraço. Pessoas suficientes para ele conhecer algumas, mas também suficientes para não conhecer todas. Quem era aquele casal ali ao fundo, ele com ar de cientista louco, ela com ar de hippie? Quem eram aqueles três rapazes que fumavam charros na varanda? Pareciam vindos de uma manifestação anti-globalização. E quem era...quem era esta mulher que se aproximava dele a sorrir? 

A cara não lhe era estranha, era bonita, olhos castanhos, cabelo moreno encaracolado. Não era nem muito alta nem muito baixa, vestia uma mini-saia preta e um top sem ousadia demasiada, e ria-se para ele, enquanto andava na sua direção.

Ele sorriu também, mas por mais que esforçasse a memória não se lembrava dela. Ou melhor, tinha uma vaga ideia de que a conhecia, mas isso só servia para o confundir ainda mais, pois é desesperante não se encontrar a ficha certa no arquivo. 

Ela disse:

- Olá, tás bom?

Procurou no seu facebook mental. Seria do trabalho? Duma reunião de marketing? Da empresa anterior, de onde ele saíra há três ou quatro anos? Do seu primeiro emprego? Da faculdade? Do colégio? Da noite?

- Tudo bem, e tu?

Ela riu-se. Porquê? Tinha a certeza que não a conhecia intimamente. Não podia ser uma rapariga com quem tivera uma noite louca, demasiado bêbado para se lembrar. Isso já não lhe acontecia há mais de vinte e anos! Pensando bem, na verdade isso nunca lhe acontecera, lembrava-se de todas as situações, tinha a certeza. Tirando aquela vez em Albufeira, mas isso não contava, eram inglesas.

- Tens estado com a Teresa?, perguntou ela.

Ui, a coisa ia de mal a pior! Qual Teresa? Não tinha nenhuma amiga Teresa, nunca tivera uma namorada Teresa, e também não havia Teresas na sua família.  Mas, não desfez o equívoco.

- Pouco, respondeu. Já não a vejo há imenso tempo.

Ela mostrou-se compreensiva. Pelos vistos ela também já não estava com a Teresa há muito. Mas depois acrescentou:

- Foi uma época bem divertida...

Bolas, cada coisa que ela dizia o confundia mais. Época divertida, sim, mas qual? Parecia uma coisa distante, século passado, talvez tempos de estudante...De repente, ele ficou mesmo aflito, quando ela acrescentou:

- Ainda não sabes usar o Excel? Éramos sempre nós que fazíamos tudo! 

O Excel sempre fora o seu terror! Fosse na universidade, fosse no seu trabalho, era uma desgraça com o Excel, e ela sabia! Portanto, ela conhecia-o, enquanto ele nem fazia ideia de quem ela era, quanto mais se usava o PowerPoint!

Decidiu contra-atacar e abriu um sorriso confiante:

- Melhorei muito desde esses tempos! Fiz um curso intensivo, agora sou uma máquina! Até tenho Twitter! Um rei da informática!  

Ela riu-se imenso, divertida. E perguntou:

- Lembras-te do que dizias da tecla "enter"?

Fez um sorriso matreiro, numa clara sugestão sexual, e o coração dele acelerou. "Enter"? Será que as coisas tinham chegado ao "enter" e ele não se recordava?

- Ou então "insert"..., murmurou, dengosa. 

Ela deu um gole na bebida (a ele parecia qualquer coisa com morango, talvez vodka) e depois suspirou:

- Eras mesmo divertido, Ricardo.

Depois, olhou-o nos olhos e perguntou:

- Estás sozinho?

Ele sorriu, bem disposto. Decidiu que não valia a pena tentar vasculhar mais os seus neurónios, já não era importante lembrar-se. Ela estava claramente disponível, e mais valia aproveitar. Disse:

- Fiz um "delete" à companhia...

Riram-se, e horas mais tarde estavam abraçados, dentro do carro dele, aos beijos. Haviam bebido bastante, dançado bastante e conversado pouco, mas agora já não era hora de conversas, por isso ele ficou verdadeiramente surpreendido quando ela parou a meio de um beijo e franziu a testa.

Ele puxou-a mais para perto, as mãos à procura do peito dela, mas ela afastou-o. Intrigada, comentou:

- Acho estranho uma coisa...

Ele olhou para ela, respirou fundo, e perguntou:

- O quê?

Ela continuava de testa franzida e disse:

- Nunca disseste o meu nome...Nem uma vez...

Ui, agora é que ela se lembrava disso? Claro que nunca dissera o nome, como é que ele podia dizer se não se lembrava dela? Mas agora, já com as mãos aceleradas a explorar a anatomia dela, é que ele ia ter de parar? Que tortura...Então, a solução saiu-lhe num segundo:

- Princesa...Os outros podem chamar-te o que quiserem, mas para mim és princesa!

Foi pior a emenda que o soneto. Ela olhou para ele verdadeiramente horrorizada e exclamou:

- Que foleiro! Além de mentiroso és foleiro!

Ele ficou aterrado, sem saber o que dizer. Chocada, ela gritou:

- Tu não és o Ricardo, pois não? Tu não te lembras de mim, pois não?

Ele engoliu em seco. Não sabia mesmo o que fazer. É evidente que não era o Ricardo! Mas, apesar de tudo, era um tipo simpático. Ela não tinha sido obrigada a nada! 

- Como é que tu te chamas?, perguntou ela, irritada.

Ele esclareceu-a, honesto. Explicou que havia coisas na história que batiam certo. Lembrava-se dela, não sabia usar o Excel. Tirando o pormenor da Teresa, deviam ter-se conhecido mesmo, há uns anos atrás, em algum lugar. 

Então ela suspirou e disse:

- A culpa é minha.

Ele perguntou porquê e ela explicou:

- Tenho péssima memória. Lembro-me das caras, mas não me lembro dos nomes das pessoas. É um bocado chato, não é?

Ele encolheu os ombros, mas lá lhe foi explicando que o importante é que tinham achado graça um ao outro. Não eram os nomes, ou de onde é que se conheciam. Recomeçaram a beijar-se, e ela acabou por concordar, embora já não se lembre bem com quê. 

publicado por Domingos Amaral às 11:58 | link do post | comentar | ver comentários (2)
Sexta-feira, 26.10.12

Um amor antigo (parte IV e fim)

Na telenovela, o marido matara a tiro a mulher e o amante dela, e foi nisso que ele pensou quando a encontrou naquela festa, acompanhada. Porque é que se lembrou desse melodrama sangrento? Não fazia qualquer sentido, eles não eram casados, não eram sequer namorados, ela não o estava a trair por estar com outro homem. Além disso, achava que tiros e honra eram coisas antigas, já não faziam qualquer sentido nos nossos tempos. Contudo, lembrou-se do episódio, da pistola, dos mortos nos lençóis, e nesse momento percebeu que nunca a iria perdoar, nunca iria esquecer o que se passara muitos anos antes, quando ela o traíra. Eram namorados apenas, muito novos, mas cornos são cornos, em qualquer idade doem e raramente se apagam da memória.

Viu-a ao fundo, encostada ao bar. Parecia divertida, falava com um homem muito animada. As cabeças quase se tocavam, murmuravam ao ouvido e olhavam nos olhos um do outro. Era fácil de perceber que estavam muito concentrados, e isso tinha um significado tão cristalino que ele não precisou de observar mais, e colocou naquele momento um epitáfio sobre o seu amor antigo. Por ali não ia mais.

Mas, não abandonou a arena, a festa até estava divertida, a música recordava os anos 80, um hábito que ele adorava, e deixou-se ficar. Pediu um whisky, encontrou amigos, falou da crise e de futebol, e foi conhecendo algumas mulheres que por ali passavam. Pelo canto do olho, ia espreitando, a ver se os via, e lá para as duas da manhã cruzaram-se, perto da pista de dança. Ela vinha à frente, o amigo atrás, ele sorriu e beijaram-se na cara. Ela apresentou o amigo, que tinha sotaque do Porto, trocaram duas ou três palavras de ocasião, e seguiram o seus respectivos caminhos. 

Ele gostava de dançar e na pista, animado, viu alguém que o interessou, meteu conversa, exibiu-se. Meia hora mais tarde estava encostado ao bar outra vez, mas agora já acompanhado por uma rapariga bem mais nova do que ele e bem mais gira do que ela, o seu amor antigo. Ou pelo menos era isso que ele achava agora, bem bebido e ainda ressentido do abandono a que ela o votara. 

O ressentimento é uma motivação como outra qualquer, e portanto investiu na moça. Trocaram beijos rápidos, e foi depois de um desses que sentiu uma mão nas costas. Não foi uma mão suave, foi mais um beliscão. Era ela, e estava sozinha. O amigo com sotaque tinha desaparecido, ou pelo menos não estava à vista. Queria esclarecer alguma coisa, mas ele já estava um bocado tocado, por isso não entendeu a pergunta.

- O quê?

Baixou o pescoço, encostou o ouvido mais próximo da boca dela, esforçando-se. Ela repetiu o que dissera.

- Porque é que não combinaste para virmos juntos?

Ele encolheu os ombros. Não valia a pena inventar desculpas. E ripostou:

- Mas tu não perdeste tempo...

Ela revirou os olhos, irritada:

- É um amigo, estava cá hoje, veio comigo à festa.

Nesse momento, talvez o amor antigo deles ainda tivesse salvação, mas a rapariga com que ele já trocara uns beijos decidiu intervir e perguntou, em voz alta, para que ela ouvisse bem:

- Então, não íamos até ao carro?

Ela ficou estupefacta, limitou-se a abanar a cabeça e sorriu, dizendo em voz baixa:

- Divirtam-se...

Afastou-se, foi ter com o amigo do Porto que estava à espera dela, como um fiel guarda-costas. Foram dançar, e provavelmente a história deles pegou fogo a partir dessa noite, mas isso ele já não sabe, há meses que não a vê. Só sabe é que confirmou o que pensava desde a primeira vez que tinham estado juntos, que ressuscitar um amor antigo raramente resulta. 

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Terça-feira, 23.10.12

Um amor antigo (parte III)

É evidente que, uns dias depois, foi ele que pegou no telefone e falou para ela. Os homens dão muito mais importância ao sexo do que as mulheres, e ele tinha ficado fascinado, porque agora ela fazia "aquilo", e ainda por cima fazia bem, mesmo muito bem. Tinha pensado nisso, várias vezes, à noite na cama. A imagem dos dois, a recordação daqueles momentos tórridos, era uma fantasia que renascia contastantemente no seu cérebro.

Portanto, não resistiu. Queria mais, mais daquele amor antigo tornado presente, mais do que ela não fora mas agora era. E isso sobrepôs-se a tudo, até ao seu instinto de precaução. A força do desejo fê-lo esquecer a traição de que fora vítima do passado, tão antiga que parecia diminuída na sua gravidade, e a ambiguidade dela no presente. Nos homens, é muitas vezes assim, o deslumbramento sexual tolda-os, como toldam meio litro de cerveja pela goela abaixo, ou dois whiskies duplos. 

Portanto, aqui vai disto, telemóvel e ela atende. Parece contente, mas depois das banalidades não se revela disponível. Tem programas para os próximos dias. Não, não vai ao Porto outra vez, e ri-se quando ele fala disso, comenta "tu és mesmo de ideias fixas". Mas, é claro que não lhe conta que um dos amigos do João, que ela conheceu na festa no Porto, troca com ela mensagens todos os dias no Facebook. Ela aprendeu, com a vida, que certas coisas não são para se contar aos homens, porque eles nunca mais se esquecem disso, e vão repeti-las, vida fora, como uma menemónica irritante, sempre que se zangarem com ela.  

Entretanto, ele acha que ela se está a fazer de cara. Pressentiu a sua fragilidade negocial - foi ele que falou, quem pega no telefone é quem está mais dependente - mas já a transformou numa arma de arremesso contra a recusa dela.

- Tu é que querias estar mais vezes juntos...

Ela sorri, sabe que tem dúvidas, o seu coração não está decidido, não o quer totalmente, mas também não o quer perder, pois não tem nada ainda a que se agarrar, a não ser umas breves frases escritas num computador a mais de 300 quilómetros de distância. Decide que é melhor não o irritar, aceita vê-lo, e lá combinam o seu terceiro encontro, outra vez em casa dela. 

Quando ele toca à porta, ela está a acabar de se arranjar. Beijam-se, ela com o secador na mão, ele com nova garrafa de vinho tinto e novos queijos. Ela pensa que ele devia variar, talvez presunto ou mesmo paté fosse boa ideia, mas não o diz.

Ele está apenas deslumbrado com os cabelos dela. O que é que se passa com os cabelos das mulheres, pensa? Porque é o cabelo tão importante para elas ? Segue-a de regresso à casa de banho, observa-a a secar as pontas molhadas, e depois a pentear-se. Gosta dos longos caracóis dela, mas gosta ainda mais do rabo de cavalo que ela costumava fazer, mas esta noite não faz. Ela olha-se ao espelho, passa mais uma vez a escova (ou será um pente?) no cabelo, e parece satisfeita com o resultado. 

Meia-hora mais tarde, o cabelo dela ficou um desastre, pelo menos é disso que ela se queixa. Cabelo de mulher depois do sexo é como um lençol depois do sono, amarrotado, com volteios imprevisíveis, curvas e lombas que ninguém sabe como se formaram. O sexo foi bom, pensa ele, mas ela convenceu-se de que o seu cabelo parece o de uma boneca animada de um cartoon televisivo, depois de apanhar um choque eléctrico. Afasta-se dele, volta à casa de banho, e passa muitos minutos a pentear-se, e a chegar à conclusão que continua com dúvidas. Depois, regressa à cama, e decide vestir-se, o que o surpreende.

Ele quer mais, gostava de repetir, ficar ali no bem bom, quem sabe até dormir. Ela não, diz que não quer estragar o cabelo, passa por fútil por ter usado tal desculpa, mas não se importa. Está angustiada, já percebeu que o único motivo pelo qual ele regressou foi o sexo, e isso assusta-a. Não porque não tenha gostado, até gostou, mas porque sabe que o sexo para eles está a tornar-se um biombo, atrás do qual ficam escondidas as verdades mais profundas. Ela duvida que ele consiga esquecer o passado, nem mesmo o sexo será garantia segura, e pressente que, se ficarem juntos, vai ter de ouvi-lo a vida toda. 

Portanto, despedem-se mais uma vez, sem grandes combinações. Ele finge que não se importa, e depois da porta dela se fechar, jura a si próprio que não voltará a falar-lhe. Já no sofá, ela sente-se estranha, gostava de gostar mais dele, de o querer ali, mas não é isso que sente. Chora um pouco, e depois liga o Facebook e conversa com o amigo do Porto.

Mas, a história é capaz de não acabar aqui. 

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Quinta-feira, 18.10.12

Um amor antigo (parte II)

Uma semana depois, o telefone dele voltou a tocar. Quer dizer, o telefone tocava muitas vezes ao dia, mas aquele toque era especial. Era o toque que ele escolhera para ela, o seu amor antigo que regressara à procura de mais. Tracy Chapman, "Baby Can I Hold You". Tinham ido ao concerto juntos, um mês antes de ela lhe pôr dois palitos grossos no alto da testa. Escolhera-o para saber que era ela e para não a atender, por se lembrar do que sofrera, da "saliva que gastei para te mudar", como cantava o Rui Veloso, noutro concerto a que tinham ido juntos. "Foda-se, já passaram mesmo muitos anos", pensou ele antes de atender o telefone, pois quando se tratava de mulheres nunca conseguia cumprir o que prometia a si próprio quando estava sozinho.

- Olá, disse ela, a rir.

Porque é que ela ria? Será que era tão convencida ao ponto de pensar que ele estaria sempre pronto para ela? Ele não sabia que era nervosismo, mas é sempre difícil imaginar o que vai na cabeça de outra pessoa.  

- Olá, tudo bem?

Porque é que perguntava se estava tudo bem com ela se já sabia a resposta? 

- Tudo, disse ela. E contigo?

Está sempre tudo bem, pensou ele. É um bordão irritante, nunca ninguém diz, logo a frio, "estou na merda, farto de tudo e de todos". É como quando perguntamos "o que tens feito?", e do lado de lá respondem "nada de especial", e apetece logo ripostar "e que não seja de especial, o que é que tens feito?". 

- Tudo bem, respondeu

Não era dado a originalidades, embora as exigisse aos outros. Decidiu ir direito ao assunto e perguntou:

- A festa no Porto, que tal?

Ela nunca iria admitir que fora uma decepção, o João não lhe ligara nenhuma, estava casadíssimo, e nenhum dos amigos deles era interessante. Havia vários que eram giros, dois tinham investido nela, mas nem sabiam conversar. Eram egocêntricos, só falavam deles, do surf que faziam, das festas a que tinham ido e de quantas caipirinhas haviam bebido. Pilinhas com pilhas, tinha pensado ela, desconsolada, no regresso pela A1 no Domingo. E apesar de um deles já a ter abordado no Facebook ontem, não estava para aí virada.

- Foi gira, deitei-me às seis da manhã.

E aposto que sozinha, pensou ele, senão não me estavas a falar hoje. 

- Queres ir ao cinema?, perguntou ela.

- Hoje não posso, respondeu ele.

Devia ser dia de jantar com os filhos, foi o que ela concluiu. 

- Não tem de ser hoje, podemos ir amanhã, ou no sábado.

Quem é que vai ao cinema ao sábado, pensou ele? Está tudo cheio, mesmo com a crise.

- Mas se não quiseres cinema, podemos alugar um filme em casa, no Meo. 

Isso já lhe parecia mais interessante, refletiu ele. Casa, filme, sofá, sexo, cama, mais sexo: é a ordem natural das coisas.

- Amanhã?, perguntou ele.

Ficou decidido. Falaram de mais assuntos, mas o importante já estava dito, e no dia seguinte ele tocou à porta dela, com uma garrafa de vinho e dois queijos comprados nas Amoreiras. Para a ceia, que ambos já tinham jantado à pressa, uma qualquer comida retirada de uma qualquer embalagem descongelada no microondas, que é o jantar do costume de quem vive sozinho e tem mais pressa que tino. 

- Obrigado, agradeceu ela.

Ele abriu o vinho, ela foi buscar um prato e uma faca, cortaram os queijos e no fim falaram. Sobre o que lhes tinha acontecido, sobre o que lhes podia acontecer. Usaram expressões como "precisamos de tempo", "eu não sei bem o que quero", "o problema é meu", "depois de um divórcio é complicado gostarmos de alguém", mas cerca de vinte minutos depois ele já estava com as mãos nas cuecas dela (que reparou que eram novas), e a partir daí foi impossível parar. Depois, semi-nus e ainda no sofá, demoraram algum tempo a estabilizar a respiração, e por fim riram-se, bem dispostos, e voltaram a comer queijo e a beber vinho. Ela perguntou se ele queria ver o filme, e ele sorriu e disse:

- Já vi.

Ela riu-se, divertida. Ele observava-a com atenção, curioso, e uns segundos depois perguntou:

- Onde é que aprendeste a fazer...aquilo?

Ela revirou os olhos. O que raio era esta pergunta? Encolheu os ombros, mas não respondeu.

Então ele murmurou:

- No meu tempo, não havia disto.

Era verdade, no tempo em que ele a namorara, ela era mais contida, mas depois tinha estado casada muitos anos, sempre às ordens, e agora que se soltara das amarras do marido mais valia aproveitar o que aprendera. Sorriu-lhe:

- Tenho visto muitos filmes...

Raça da miúda, esperta como um alho. Teria sido inteligente da parte dele parar por aqui, mas a curiosidade que o assaltava levou a melhor. Perguntou-lhe:

- Desde que te separaste, sou eu o primeiro?

Ela olhou para ele um bocado desiludida. Porque é que os homens davam tanta importância aos outros homens? Se ela quisesse estar com outro homem não estaria ali com ele, no sofá, a beber vinho, a comer queijo, a fazer "aquilo". Decidiu ripostar:

- E eu, vou ser a última?

Ao ouvi-la, ele sentiu um ligeiro mal estar interior. Não gostava de pensar que a boa vida que tinha tido nos últimos meses podia acabar. Tinha tido muitas mulheres e sabia que cuecas novas eram sinal de muito sexo. Mas, ela era apesar de tudo diferente, era especial. E agora até fazia "aquilo". 

- Não nos vamos precipitar, disse ele. Vamos andando e vamos vendo.

Ela olhou-o nos olhos e perguntou:

- E enquanto vais andando e vendo, vais andando e vendo outras pessoas?

Isto começou a enervá-lo. O que é que ela queria? Queria "ser namorada", queria um "voto de fidelidade", uma promessa na Igreja, uma declaração reconhecida pelo Notário? 

- E tu?, perguntou ele. Vais mais vezes ao Porto?

A conversa estava em risco de azedar, por isso ela premiu o botão do comando e começaram a ver o filme na televisão. Hora e meia mais tarde, ele saiu de casa dela, não combinaram nada certo para os dias seguintes, mas a história é capaz de não acabar por aqui. 

publicado por Domingos Amaral às 11:59 | link do post | comentar | ver comentários (2)
Segunda-feira, 15.10.12

Um amor antigo

Diz-se que muitas mulheres, quando acabam um namoro ou um casamento, vão primeiro à procura de um amor antigo para as consolar. Alguém que as encantou no passado, alguém que conhecem, a quem já deram a mão, já beijaram na boca, alguém em cujo corpo já tocaram. O desconhecido é sempre um território assustador, e embora a novidade seja sedutora e até empolgante, quando se anda ainda com uma dor cá dentro, convém diminuir os riscos. E foi assim também com eles.

Ele estava divorciado há um, (ou seriam dois anos?), mas continuava a aproveitar o tempo perdido, coleccionando namoricos soltos ou noitadas tórridas sem consequências na cardiologia amorosa. Ela fechara por esses dias o último capítulo com o marido, e estava a descobrir como renovar a vida e as cortinas de casa. Foi ela que o abordou no Facebook. O costume, "como estás?", "tudo bem", (está sempre tudo bem mesmo quando está mal) e lá acabaram por combinar um almoço. É uma refeição menos óbvia que um jantar, normalmente não são tão altas as expectativas carnais. É claro que era tudo a fingir, eles no fundo queriam os dois, mas era cedo, mais valia almoçar primeiro.

Acabaram na cama, em casa dele, a meio da tarde. Depois do sexo, ela chorou, era a primeira vez em muitos anos que dormia com outro homem que não o marido, e isso emocionou-a. Ele ficou com dúvidas, será que ela não tinha gostado? Mas, sempre sentira carinho e ternura por ela, mesmo sabendo que fora ela que o deixara, uma noite há mais de quinze anos, quando eram namorados. Abraçou-a e beijou-a e quis saber o que se passava.

Ela fungou, limpou as lágrimas, ajeitou o cabelo num rabo de cavalo feito à pressa e perguntou:

- E agora?

Ele adorava vê-la de rabo de cavalo. Ainda tinha uma fotografia antiga, tirada numa praia do Algarve, no Inverno, os dois de casacões e botas, muito mais novos, onde ela estava de rabo de cavalo. Já não se lembrava onde estava a fotografia, talvez no pequeno baú, encostado ao sofá da sala. Mas lembrava-se do rabo de cavalo e disse-lho:

- Adoro ver-te de rabo de cavalo.

Ela sorriu, achou querido ele dizer aquilo, mas não admitiu que ele desviasse a conversa. Repetiu a pergunta:

- E agora?

Ele piscou os olhos, começou a lembrar-se que ela era persistente, era uma das coisas que ele não adorava nela. Adorava o sorriso, o rabo de cavalo, o rabo propriamente dito, as pernas longas, a forma como ela se vestia, sempre com muito bom gosto. Mas não adorava a persistência. Respirou fundo:

- Agora? Vamos falando, temos tempo. Hoje não posso, é dia de jantar com os meus filhos, mas amanhã podemos combinar. Ou no fim de semana.

Ela nem se lembrava bem quantos filhos ele tinha, seriam dois ou três? Mais os três dela eram seis. E amanhã também não podia, já tinha combinado ir jantar com três amigas, divertir-se, dançar, apanhar um pifo para esquecer as chatices. Mas, foi aquele "ou no fim de semana" que a enervou. Não era amanhã "e" no fim de semana, era amanhã "ou" no fim de semana. Como se ele não quisesse estar com ela em ambas as situações, como se ele tivesse uma vida muito cheia e não tivesse muito tempo para ela.

- Amanhã não posso, tenho um jantar.

Ele encolheu os ombros, sorriu-lhe:

- Então combinamos no sábado.

Aquilo irritou-a. Quem é que ele pensava que ela era? Será que pensava que ela estava disponível sempre que ele quisesse? 

- Há uma festa no sábado, no Porto.

Ele ergueu as sobracelhas. Não lhe dava jeito ir ao Porto, sábado ia fazer surf, e no domingo de manhã já tinha combinado com o pai jogar ténis. 

Ela perguntou:

- Não queres ir?

Ele riu-se:

- Não é não querer, mas já tenho coisas combinadas.

Ela olhou para ele, e ele achou que ela podia estar a pensar que ele tinha outras raparigas com quem saía. Era verdade, mas não era por isso que não podia ir ao Porto.

- O quê? - perguntou ela.

Ele encolheu os ombros e explicou: o surf, o pai, o ténis. Ela ouviu-o séria e depois perguntou:

- Não podes desmarcar? Era giro, íamos os dois ao Porto, ficávamos num hotel.

Sim, pensou ele, era giro. Perguntou:

- De quem é a festa?  

Ela sorriu e explicou: era de uma amiga que era casada com o João, que era o homem por quem ela o trocara há muitos anos.

Aquilo incomodou-o, nunca se esquecera daquele par de cornos. Ficou sério e disse:

- Acho que prefiro o surf e o ténis.

Ela sorriu, fingindo-se espantada:

- Não queres ir por causa do João?

Ele permaneceu em silêncio e ela riu-se:

- Por favor, isso já foi há tantos anos! Não me digas que ainda não esqueceste!

Além da persistência, ele lembrava-se agora perfeitamente que havia outra coisa que ele não adorava nela, que era o facto de ela não lhe dar especial importância. Então, decidiu provocá-la:

- Ninguém esquece nada. Olha para nós os dois. Estamos aqui porque não nos esquecemos. Se não nos conhecessemos, se calhar isto nunca iria acontecer...O passado interessa, claro que interessa.

Foi ao ouvi-lo falar no passado que ela começou a pensar no João. Será que ele ainda sentia alguma coisa por ela? Será que quando se vissem, no sábado, ia sentir vontade de estar com ele? Os ex-namorados olhavam sempre para ela com uma cara...

Foi nesse preciso momento que ele se levantou da cama e se começou a vestir. Vira nela o mesmo que vira há muitos anos atrás, uns dias antes de acabarem namoro. Vira-a a pensar noutra coisa, o que nas mulheres pode ser sempre outro homem, e como foi isso que acontecera no passado, era melhor ele não ficar por ali, não fosse acontecer-lhe o mesmo outra vez. Razão tinha o seu melhor amigo, que dizia que as mulheres do passado nunca são as do futuro. 

- Não vale a pena ficar chateado - disse ela, ao vê-lo a vestir-se.

Ele fingiu que não estava chateado, ela sorriu-lhe e também fingiu que acreditava. Quando ele a deixou à porta de casa, prometeram voltar a falar-se, um pouco embaraçados. A única coisa certa é que ele não iria ao Porto, ao contrário dela. Mas, é evidente que esta história não acaba aqui... 

publicado por Domingos Amaral às 12:04 | link do post | comentar | ver comentários (2)
Segunda-feira, 08.10.12

Encontro no supermercado...

Foi no corredor dos leites. Ele procurava leite meio gordo, ela leite magro. Ele empurrava um carrinho já atulhado de paletes de cerveja, amendoins e cajus, batatas fritas, e até, pasme-se, douradinhos! Ela tinha começado agora, só colocara no carrinho dois iogurtes gregos e uns frutos secos, talvez pistachios, ele não sabia, pois nem teve tempo para verificar, uma vez que dera com ela de costas, esticada em cima do expositor, a tentar chegar com a mão a um pacote qualquer.

Ele reparara logo nos calções de jeans dela. Ou melhor, ele repara na bordinha das nádegas que apareciam junto às ripinhas descosidas dos calções. Eram lindas, bem desenhadas, graciosas, capazes de causar apoplexias gerais por esse mundo fora. E estavam ali, em promoção, à frente dele. Lentamente, passou com o carrinho por ela, admirando também as suas belas pernas, as botinhas curtas que lhe envolviam os pés, a camisa laranja que usava, o rabo de cavalo com que apanhava o cabelo castanho escuro.

Foi nesse momento que ela bufou, enervada, incapaz de chegar à embalagem de leite magro. Recolheu o braço e olhou para ele, sorrindo. Ele sorriu-lhe também, e vendo-a embaraçada, perguntou:

- Precisa de ajuda? 

Apesar de envergonhada, ela não desfez o sorriso, e confirmou com um aceno de cabeça. Era gira, embora talvez o queixo fosse um pouco longo demais. Ele avançou sobre o expositor, esticou o braço direito, apanhou a embalagem de leite magro, puxou-a pela alça, e depois apoiou-a no braço esquerdo, dividindo o peso. Em poucos segundos, os seis pacotes de leite magro repousavam no carrinho dela, ao lado dos frutos secos e do iogurte grego.

Ele achou estranho ela querer tanto leite, mas obviamente era demasiado cedo para uma pergunta tão privada, por isso limitou-se a comentar:

- Se calhar, eu também devia levar leite magro, pelos vistos dá um óptimo resultado!

Ela riu-se, e olhou para o carrinho dele. 

- Melhor do que batatas fritas e cerveja.

Ele acenou com a cabeça, dando-lhe razão, e justificou-se:

- Vou ver o futebol com uns amigos, lá em casa.

Ela riu-se outra vez, radiosa e amável.

- Estou a ver que somos ambos previdentes.

Ele estranhou, franziu a testa, sem perceber. Ela manteve o sorriso e apontou para os carrinhos:

- Eu compro leite para duas semanas, você faz compras à segunda para o próximo sábado.

Ele ficou fascinado. Numa única frase, ela dera-lhe a entender que não só vivia sozinha, como também que gostava de futebol, pois sabia perfeitamente que só haveria jogos no fim de semana.

Confiante, ele sorriu-lhe:

- Se for do Sporting, convido-a já para irmos esquecer tristezas juntos...

Ela riu-se, lisonjeada, mas abanou a cabeça.

- O meu pai é catalão, sou do Barça.

Ele fingiu-se desapontado, encolheu os ombros.

- Então não tenho qualquer hipótese.

Foi a vez dela franzir a testa:

- Não me diga que é como as equipas que jogam contra o Barça?

Suspirou, agora era ela que fingia estar desapontada:

- Quase todos desistem cedo demais...

Ele sentiu-se ferido no seu orgulho, e olhou-a nos olhos. Ela aguentou a força do olhar dele, com um sorriso matreiro nos lábios. Ele perguntou:

- A melhor defesa é o ataque?

Ela riu-se e murmurou:

- Já vi que é de transições rápidas.

Ele semicerrou os olhos, estava lançado:

- Olhe que eu faço um passe em profundidade.

Avançou na direção dela, e ela recuou, piscando os olhos. Ele tocou no carrinho dele, afastando-o para a direita, e depois tocou no carrinho dela, afastando-o para a esquerda. O dela guinchou um pouco, estava com uma roda empenada.

Já em frente dela, ele afirmou:

- Com duas tabelas, ultrapassei a sua defesa...

Ela quase se encostou ao expositor, e ele imaginou as bordinhas das nádegas dela, a espreitar pelas ripinhas dos jeans. Investiu na direção da baliza, mas de repente ela gritou, apontando com o dedo para a sua esquerda:

- Fora de jogo, fora de jogo! 

Surpreendido, ele olhou para a sua direita, para ver se o árbitro auxiliar tinha levantado a bandeirinha. O estádio inteiro revoltava-se a assobiar, foi isso que ele pensou quando viu um homem alto, com um ar sério, a vir na direção deles. Por um segundo, admitiu que fosse o pai dela, o catalão. 

O homem sério perguntou:

- Que se passa, meu amor? O que é que este tipo quer?

Ela sorriu, divertida, e esquivou-se dali à pressa, empurrando o carrinho. Olhou para o marido, (ou seria namorado?), abraçou-o e acalmou-o: 

- Nada, meu amor. Acho que quer leite meio gordo, só isso...

Afastaram-se para longe dele, o carrinho a chiar da roda, a embalagem de leite magro lá dentro, as nádegas dela ainda a mostrarem o rebordo. Nunca mais se viram. Na caixa, enquanto pagava, ele não levantou a cabeça dos sacos, e nem reparou que na fila, atrás dele, estava outra rapariga bonita. Também de calções...   

publicado por Domingos Amaral às 12:13 | link do post | comentar
Quinta-feira, 27.09.12

Um casal e as 50 sombras de Grey

Estavam lado a lado, na cama. Ela lia as "50 Sombras de Grey", ele consultava o seu iPad. De vez em quando, ela suspirava, mas ele nem ligava, pois sentia que já não existia entre eles muito "chamego", como diz a Zarolinha da telenovela Gabriela. Continuaram assim, ela a ler e a suspirar, ele a ver páginas sobre gadgets na net.

Algum tempo depois ela pousou o livro à cabeceira, murmurou um "boa noite" que ele retribuiu, desligou a luz do seu candeeiro, e enrolou-se para dormir, virando costas ao marido. Este deixou-se estar, mas dez minutos depois pressentiu que ela já estava ferrada a dormir e começou a visitar sites pornográficos no seu iPad. Num deles, descobriu uma loira espectacular, de grandes pernões, seios volumosos e um sorriso malandro na cara. Sentiu a excitação a chegar e levou a mão ao baixo ventre. 

Precisamente nesse momento, a mulher soltou um gemido. Não foi um gemido qualquer, era um gemido parecido aos que ela soltava quando...Foi por isso que ele franziu a testa, surpreendido. Segundos depois, ela voltou a gemer. Ele reparou também que ela mexia a perna esquerda ligeiramente, e que tinha o punho esquerdo fechado. Aquilo enervou-o.

Num gesto brusco, pousou o iPad fechando a capa, tocou-lhe nos ombros, abanou-a, e ela acordou, estremunhada. Piscou os olhos e olhou para ele:

- O que foi?

- O que foi pergunto eu! - exclamou ele, com ar sério.

Ela piscava muito os olhos, sem perceber.

- O que eram esses gemidos? - perguntou ele.

Ela sentou-se na cama, ainda a piscar os olhos.

- Gemidos? Que gemidos?

Ele imitou-a, num tom de voz forçado e ela sorriu e mentiu.

- Eu..., eu estava a ter um pesadelo.

Ele indignou-se:

- Desculpa lá, mas isso não era um pesadelo! 

- Então? - perguntou ela, com ar inocente.

Ele respirou fundo, tentando controlar-se:

- Tu estavas a ter um sonho erótico! Parecia que estavas a ter um orgasmo!

Ela abriu muito os olhos, deu uma pequena gargalhada, quase infantil, de menina apanhada em contrapé, e reconheceu a verdade.

- Pois estava!

Ele ficou ainda mais enervado. Ela percebeu o que ele temia e tentou acalmá-lo, com mais uma mentirola.

- Mas...o sonho era contigo! 

Ele esperou, em silêncio, um esclarecimento mais detalhado.

- Estávamos a fazer amor...Eu estava de joelhos no chão e tu puxavas-me os cabelos por tráz, e possuías-me...

- Eu? - perguntou ele.

- Sim, tu...e davas-me palmadas no rabo!

Ele ficou siderado, estupefacto a olhar para ela.

- Estava a ser bom... - murmurou ela.

Ele sentiu os primeiros sintomas de apoplexia, e gritou:

- Mas eu nunca te bati! Nem nunca te puxei os cabelos!

Ela revirou os olhos, exasperada. Ele prosseguiu, exaltado:

- E como é que sabes que era eu? Segundo percebo, estavas de costas, não era?

- Sim - confirmou ela

- Então, podia não ser eu!

Ela revirou de novo os olhos, encolheu os ombros e mentiu outra vez:

- Por favor, achas que eu não sei se és tu?

Na verdade, ela não tinha a certeza. No seu sonho, parecia que quem a possuía era o herói das "50 Sombras", o Grey. Mas como ele era um herói imaginário, a quem ela não conhecia a cara, podia muito bem ser quem ela quissesse.

Mas ele não estava convencido. 

- Se calhar era o Pedro, o teu ex, de quem gostavas tanto! Ou o teu chefe, toda a gente sabe que isso acontece a muitas mulheres!

Ela voltou a revirar os olhos, o seu chefe era gordo e baixo, e o Pedro há meses que não lhe enviava sequer um sms...

- Isto é do livro... - suspirou ela.

- O quê? - perguntou ele, sem perceber.

Ela pegou no livro "As 50 sombras de Grey" e mostrou a capa ao marido.

- É muito intenso, cheio de sexo, ao pormenor...

O marido estava de novo perplexo. Então ela, num gesto brusco e sem que ele a conseguisse impedir, pegou no iPad que estava pousado ao lado dele e disse:

- Li outro dia uma crítica, dizia que era "pornografia para mamãs", vou procurar na net para te...

Ao levantar a capa do iPad, ela descobriu a foto da loira explosiva e mamalhuda. Ficou paralisada. Depois, virou-se para ele:

- O que é esta merda? Andas a ver sites pornográficos? 

Atrapalhado, ele tentou justificar-se, meteu os pés pelas mãos, balbuciou uma mentirola qualquer.

Ela levantou-se da cama, irada. Nesse momento, umas das alças da camisa de noite tombou sobre o seu ombro e desceu pelo antebraço, deixando à mostra uma parte do seu peito. Ele viu o disco do mamilo dela a aparecer e gostou.

Mas ela estava furiosa.

- Mas o que é isto? Quem é esta gaja, esta badalhoca de perna aberta?

Ele tentou pacificá-la:

- Isso não interessa, é só uma fotografia. Essas gajas são todas iguais, cheias de mamas falsas, é só silicone...Não são como as tuas, bonitas e naturais...

Ela acalmou ligeiramente, mas não quis dar o braço a torcer.

- Eu não acredito nisto, és um porco!

Ele encolheu os ombros, sorriu-lhe.

- Vá lá, não fiques assim. Tu estavas a ler um livro, eu a ver a net, cada um para seu lado, aconteceu, não tem significado especial...Vem cá. 

Estendeu-lhe a mão, e ela, com alguma relutância, estendeu a dela. Voltou à cama, embora ainda com cara de amuada.

Ele abraçou-a, beijou-a no ombro e depois na boca e disse:

- És muito melhor que qualquer dessas mulheres...

Desceu os beijos para o pescoço e depois para o peito dela, excitado. Ela murmurou:

- Cuidado, os miúdos podem ouvir...

Ele levantou-se e foi fechar a porta do quarto. Entretanto, ela pegou no iPad. A loira da fotografia deu uma volta sobre si própria, enquanto o ecran virava de vertical para horizontal. Ela fez desaparecer a galdéria num segundo, e procurou um wallpaper novo para o desktop, um fundo mais apropriado. Depois, apagou a luz do lado dele e o quarto tomou uma tonalidade vermelha, picante e sensual. Ele murmurou:

- Uau...esse livro...

Começaram a tocar-se, a amassar-se, a rolar pela cama. Quando estavam já nus, e ele se preparava para entrar dentro dela, perguntou:

- Como é que era o teu sonho?

E ela explicou-lhe.

 

 

 

 

 

publicado por Domingos Amaral às 11:49 | link do post | comentar | ver comentários (4)
 

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