Terça-feira, 09.10.12

Teatro e crises económicas

As crises da dívida externa, ou "soberana", como agora se diz, têm uma estrutura em 3 actos, muito semelhante às peças de teatro, às óperas, aos filmes, ou mesmo aos livros. Há o 1º Acto, com os incidentes iniciais, que lançam a história, depois o 2º Acto, onde se desenvolve a intriga, e por fim tudo acaba num climax espantoso, positivo ou negativo, no final do 3º Acto. Em muitos países, as coisas quase sempre aconteceram assim:


1º Acto - "Descobre-se" uma grande dívida ("externa" ou "soberana"). Seguem-se as primeiras medidas de austeridade, aplicadas pelo governo local. Rebenta uma crise política nacional, ao mesmo tempo que, sem capacidades para pagar a dívida, o país pede ajuda internacional, e entra em cena o FMI, ou a "troika" dos europeus.

Na Argentina, foi isso que aconteceu em 1998. Na Grécia, em 2009, também: descobriu-se a "megadívida", começou a austeridade,  aterrou em Atenas a "troika", e deu-se uma crise política, com a eleição de Papandreou. Na Irlanda, o guião foi semelhante, com uma crise política local e o pedido de resgate à "troika". Em Portugal, o primeiro acto ainda tinha Sócrates no Governo, que foi obrigado a pedir a ajuda da "troika". Depois, explodiu uma crise política nacional, e o 1º Acto terminou com a vitória de Passos Coelho, a meio de 2011.

A Itália e a Espanha são ligeiramente diferentes. Em Itália, o 1º Acto terminou com a saída de Berlusconi e a ascensão de Mário Monti, mas não chegou a entrar a "troika", talvez porque o país é grande demais para um resgate. Já em Espanha, o 1º Acto findou com Rajoy a aterrar na Moncloa, e com um pedido de resgate parcial, apenas para a banca.

 

2º Acto - Tudo se complica. Os governos impõem mais austeridade, causam uma forte recessão económica, falham os objectivos, e portanto têm de aplicar ainda mais austeridade. Os credores aguentam com paciência, mas a população do país, fustigada pelo desemprego e pela descrença, começa a revoltar-se. Tudo termina com uma nova, e mais grave, crise política.

Na Argentina, entre 98 e 2001, as crises sucederam-se. E na Grécia, o segundo acto viveu-se com mais fúria popular e mais incapacidade política. O fim do 2º Acto grego foi o "referendo" de Papandreou, que provocou a sua queda prematura, e a derrota colossal do PASOK nas eleições. Quanto à Irlanda, o segundo acto tem sido mais calmo, e não há ainda sinais de uma crise política, embora o desemprego continue a crescer. A Espanha e a Itália estão mais ou menos a meio do 2º Acto, há perigos de desagregação do Estado espanhol e já se sabe que Monti não vai ficar para sempre. E em Portugal, há evidências de que o 2º Acto se acelerou, a caminho do fim. A enorme austeridade fiscal anunciada para 2013, as dificuldades na coligação PSD-CDS, a instabilidade social e a revolta popular crescente, são tudo prenúncios de que se aproxima uma forte crise política. O Governo anda com medo, protegido pela polícia, e Passos Coelho disse ontem, qual treinador de futebol, que no dia em que não tiver "condições para governar", sairá.  

 

3ª Acto - A bem ou a mal, é aqui que a crise se resolve. Normalmente a mal, pois sobe muito a tensão com os credores, a recessão atinge o limite do insuportável, provoca nova e gravíssima crise política e há um "bang" final, que pode ser a bancarrota, ou então alguma decisão drástica que termina com a crise. Por vezes, são raras as situações mas existem, as tensões diminuem e os países conseguem resolver a bem a crise. 

A Argentina, em 2001, foi o falhanço mais drástico. O país revoltou-se, elegeu o "peronista" Kirshner, cortou com o FMI e não pagou a dívida externa. Depois, melhorou um pouco, mas permanece numa situação complexa. É o "mau exemplo", que muitos gostam de citar. No pólo oposto, como "bom exemplo", temos a Islândia, que apesar de ter deixado de pagar as dívidas, conseguiu recuperar-se e está de regresso aos "mercados". 

E na Europa, o que se passa? A Irlanda parece estar a safar-se, mas infelizmente a Grécia está perto do final do 3º Acto. Há enorme tensão com a "troika", no Verão explodiu uma grave crise política, a esquerda radical do Syrisa ficou a 1 por cento de vencer as eleições, e não há forma de pagar as suas dívidas. À Grécia, já só restam duas hipóteses: falir dentro do euro (o que seria terrível mas suportável), ou falir fora do euro (o que seria uma catástrofe europeia).

Quanto a Portugal, Espanha ou Itália, é prematuro dar palpites, mas as coisas não vão no caminho certo. Tudo visto e ponderado, talvez fosse melhor a Europa reconhecer que o "guião da austeridade" criou problemas novos e gigantescos (económicos, sociais e políticos) e não resolveu o problema financeiro da dívida. Em vez de mudar de povos, talvez fosse melhor mudar o guião do combate à crise...  

 

publicado por Domingos Amaral às 10:58 | link do post | comentar
Quarta-feira, 03.10.12

A moral da História

São sempre os mais fortes que escrevem a moral da História, e a crise das "dívidas soberanas" não é diferente. Desde 2009 a narrativa é poderosa, um conto moral: existem povos que "viveram acima das suas possibilidades", Estados "despesistas", países que "gastaram o que não tinham". A Grécia "aldrabou os números", Portugal e Espanha "viveram a crédito", a Irlanda "arriscou em demasia na banca", e a Itália é "uma desorganização permanente".

Subtilmente, a narrativa da "crise da dívida" criou dois grupos na Europa: os devedores e os credores. De um lado, os vilões, os feios, porcos e maus; os mal comportados e irresponsáveis (Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália). Do outro lado, os bons, os puros, os responsáveis, os bem comportados (a Alemanha à cabeça, mas também a Holanda e a Finlândia).

Este conto moral tornou-se imensamente popular. Não só no Norte da Europa, não só em grande parte da imprensa mundial, em especial a económica, mas também e surpreendentemente na maioria da população dos países do Sul. Confrontados com a crise, e com a sua narrativa moral, grande parte dos gregos, irlandeses, portugueses, espanhóis e italianos, interiorizaram estas ideias e sentiram-se "culpados" dos "males" que tinham cometido. Claro que "os políticos" desses países eram os mais fustigados e os dedos acusadores viraram-se para eles, mas dentro de muitos de nós, habitantes do Sul, a fábula moral da culpa e do erro assentou arraiais. O terreno estava adubado para o que viria a seguir.

Evidentemente, se há "culpados", é preciso que eles expiem as suas culpas, é preciso que eles sejam castigados em conformidade. Mais fortes, mais ricos, mais poderosos, os países do Norte, liderados pela Alemanha, decidiram que a redenção do Sul só viria através do sofrimento. Primeiro, era preciso castigá-los, e castigá-los bem, para que eles aprendessem a lição. Só através da punição se purificariam os "pecadores" do Sul.

Nasceram então as "políticas de austeridade", a receita a aplicar aos prevaricadores. Desenhadas pelos técnicos da economia moral, as políticas de austeridade mais não são que um "castigo", mas um "castigo" libertador e evidentemente irrecusável, pois traz dentro dele a promessa de um futuro melhor, cenoura com que nos convenceram. Supostamente, a aplicação do castigo, da austeridade redentora, lavaria as nossas almas mas sobretudo deixar-nos-ia revigorados, "competitivos". A moral da história foi, até agora, sempre esta: és culpado, portanto terás de sofrer, mas se sofreres chegarás à redenção, e no fim serás mais puro e mais forte.

Contudo, há um pequeno problema com este conto moral europeu. É que, cinco anos depois do início da crise, não há forma da redenção chegar. A economia, esse poço profundo onde só nadam problemas humanos, não se compadece com histórias da Carochinha e do João Ratão. A economia, ao contrário do que muitos pensam, não é uma fábula moral, é muito mais complexa do que isso.

De repente, os "supostos" culpados começam a revoltar-se. De repente, o sofrimento não traz purificação nem ressurreição, mas apenas mais sofrimento e degradação. De repente, nascem narrativas alternativas e conspirativas, contra a "hegemonia alemã", contra os "credores", contra o pensamento dominante. Aquilo que parecia uma fábula límpida e eficaz, começa a estilhaçar-se à nossa frente. De repente, os povos do Sul suspeitam que o sofrimento pode ter sido uma estratégia intencional para impôr até à eternidade o domínio dos povos germânicos sobre todos os outros.

Como irá esta história acabar, ninguém o sabe ainda, mas já temos pelo menos uma certeza: o guião da fábula moral que nos contaram estava incompleto, e provavelmente terá de ser revisto e alterado. Aquilo que parecia um conto simples, curto e com um final feliz, tornou-se numa telenovela prolongada e deprimente, todos os dias mais imprevisível. É isto que costuma acontecer quando se mistura a moral com a economia. Se juntarmos um decilítro de água de esgoto com noventa decílitros de leite, o resultado não é um litro de leite, mas sim um litro de água de esgoto...Será que ninguém vê como se está a espalhar a recessão pela Europa, ninguém vê como a água de esgoto está a estragar o leite?      

publicado por Domingos Amaral às 11:07 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Segunda-feira, 24.09.12

A independência da Catalunha

Sobre a possbilidade da Catalunha vir a ser independente da Espanha, há duas coisas que me apetece dizer. A primeira é que devemos admirar e louvar a forma pacífica como os catalães têm defendido a sua independância. Ao contrário do que acontece com os seus vizinhos "bascos", na Catalunha não há atentados terroristas, não há assassinatos seletivos, não há "luta armada" da ETA que mate muitos inocentes. Há uma intenção serena e firme de um povo, mas feita de uma forma política e pacífica, o que é um exemplo de dignidade e respeito que a Catalunha dá ao mundo. 

A segunda ideia que me parece importante defender é que não existe qualquer incompatibilidade entre a independência da Catalunha e a União Europeia. Se a Catalunha vier a ser um país independente, isso pode ser traumático para a Espanha, mas para a Europa não representa nenhum problema. Qual a diferença entre 17 ou 18 países no euro, qual a diferença entre ter 27 ou 28 países na União Europeia? A Catalunha, se algum dia vier a ser independente, será mais um entre muitos, e até pode ser mais fácil que isso aconteça dentro de uma União Europeia federal do que fora dela. Se todos os países estão a ceder a sua soberania à Europa, a pouca soberania que a Catalunha tiver também será partilhada. 

publicado por Domingos Amaral às 16:23 | link do post | comentar
Terça-feira, 31.07.12

O descalabro do euro

Espanha entrou em espiral depressiva, Itália está em perigo, o desemprego continua a subir para níveis assustadores em Portugal e na Irlanda, e a Grécia está de novo à beira do precipício. Neste início de Agosto de 2012, há cada vez menos europeus a acreditarem no futuro da Europa, e a crise em vez de aliviar está-se a agravar de dia para dia. Como é que vamos sair deste enorme sarilho onde todos nos metemos? O euro, em vez de ser um grande promotor do crescimento económico e da prosperidade, transformou-se num cemitério de empregos, de empresas, de bancos, de governos e de Estados. Se compararmos por exemplo o Portugal de 1998 com o Portugal de 2012, o cenário é aterrador. Em 2012 está tudo pior. Há mais desemprego, menos crescimento económico, mais pobreza, impostos mais altos, mais dívidas, mais emigração, salários mais baixos e menos benefícios fiscais. E isto passa-se não só em Portugal, mas também na Grécia, na Irlanda, em Espanha, em Itália e um pouco em França. Era isto que nós queríamos quando entrámos para o euro? Catorze anos depois está tudo pior, não se aproveita nada...   

publicado por Domingos Amaral às 12:42 | link do post | comentar | ver comentários (1)
 

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