Segunda-feira, 05.11.12

De onde nos conhecemos?

Há lá coisa mais constrangedora do que encontrar alguém que temos a certeza que conhecemos mas não nos lembramos de onde? Pior, não nos lembramos do nome! Pois foi isso mesmo que lhes aconteceu, certa noite em casa de uns amigos.

O dono da casa fazia anos e tinha organizado uma festa. Havia talvez quarenta ou cinquenta pessoas, entre a sala, a cozinha e o terraço. Pessoas suficientes para ele conhecer algumas, mas também suficientes para não conhecer todas. Quem era aquele casal ali ao fundo, ele com ar de cientista louco, ela com ar de hippie? Quem eram aqueles três rapazes que fumavam charros na varanda? Pareciam vindos de uma manifestação anti-globalização. E quem era...quem era esta mulher que se aproximava dele a sorrir? 

A cara não lhe era estranha, era bonita, olhos castanhos, cabelo moreno encaracolado. Não era nem muito alta nem muito baixa, vestia uma mini-saia preta e um top sem ousadia demasiada, e ria-se para ele, enquanto andava na sua direção.

Ele sorriu também, mas por mais que esforçasse a memória não se lembrava dela. Ou melhor, tinha uma vaga ideia de que a conhecia, mas isso só servia para o confundir ainda mais, pois é desesperante não se encontrar a ficha certa no arquivo. 

Ela disse:

- Olá, tás bom?

Procurou no seu facebook mental. Seria do trabalho? Duma reunião de marketing? Da empresa anterior, de onde ele saíra há três ou quatro anos? Do seu primeiro emprego? Da faculdade? Do colégio? Da noite?

- Tudo bem, e tu?

Ela riu-se. Porquê? Tinha a certeza que não a conhecia intimamente. Não podia ser uma rapariga com quem tivera uma noite louca, demasiado bêbado para se lembrar. Isso já não lhe acontecia há mais de vinte e anos! Pensando bem, na verdade isso nunca lhe acontecera, lembrava-se de todas as situações, tinha a certeza. Tirando aquela vez em Albufeira, mas isso não contava, eram inglesas.

- Tens estado com a Teresa?, perguntou ela.

Ui, a coisa ia de mal a pior! Qual Teresa? Não tinha nenhuma amiga Teresa, nunca tivera uma namorada Teresa, e também não havia Teresas na sua família.  Mas, não desfez o equívoco.

- Pouco, respondeu. Já não a vejo há imenso tempo.

Ela mostrou-se compreensiva. Pelos vistos ela também já não estava com a Teresa há muito. Mas depois acrescentou:

- Foi uma época bem divertida...

Bolas, cada coisa que ela dizia o confundia mais. Época divertida, sim, mas qual? Parecia uma coisa distante, século passado, talvez tempos de estudante...De repente, ele ficou mesmo aflito, quando ela acrescentou:

- Ainda não sabes usar o Excel? Éramos sempre nós que fazíamos tudo! 

O Excel sempre fora o seu terror! Fosse na universidade, fosse no seu trabalho, era uma desgraça com o Excel, e ela sabia! Portanto, ela conhecia-o, enquanto ele nem fazia ideia de quem ela era, quanto mais se usava o PowerPoint!

Decidiu contra-atacar e abriu um sorriso confiante:

- Melhorei muito desde esses tempos! Fiz um curso intensivo, agora sou uma máquina! Até tenho Twitter! Um rei da informática!  

Ela riu-se imenso, divertida. E perguntou:

- Lembras-te do que dizias da tecla "enter"?

Fez um sorriso matreiro, numa clara sugestão sexual, e o coração dele acelerou. "Enter"? Será que as coisas tinham chegado ao "enter" e ele não se recordava?

- Ou então "insert"..., murmurou, dengosa. 

Ela deu um gole na bebida (a ele parecia qualquer coisa com morango, talvez vodka) e depois suspirou:

- Eras mesmo divertido, Ricardo.

Depois, olhou-o nos olhos e perguntou:

- Estás sozinho?

Ele sorriu, bem disposto. Decidiu que não valia a pena tentar vasculhar mais os seus neurónios, já não era importante lembrar-se. Ela estava claramente disponível, e mais valia aproveitar. Disse:

- Fiz um "delete" à companhia...

Riram-se, e horas mais tarde estavam abraçados, dentro do carro dele, aos beijos. Haviam bebido bastante, dançado bastante e conversado pouco, mas agora já não era hora de conversas, por isso ele ficou verdadeiramente surpreendido quando ela parou a meio de um beijo e franziu a testa.

Ele puxou-a mais para perto, as mãos à procura do peito dela, mas ela afastou-o. Intrigada, comentou:

- Acho estranho uma coisa...

Ele olhou para ela, respirou fundo, e perguntou:

- O quê?

Ela continuava de testa franzida e disse:

- Nunca disseste o meu nome...Nem uma vez...

Ui, agora é que ela se lembrava disso? Claro que nunca dissera o nome, como é que ele podia dizer se não se lembrava dela? Mas agora, já com as mãos aceleradas a explorar a anatomia dela, é que ele ia ter de parar? Que tortura...Então, a solução saiu-lhe num segundo:

- Princesa...Os outros podem chamar-te o que quiserem, mas para mim és princesa!

Foi pior a emenda que o soneto. Ela olhou para ele verdadeiramente horrorizada e exclamou:

- Que foleiro! Além de mentiroso és foleiro!

Ele ficou aterrado, sem saber o que dizer. Chocada, ela gritou:

- Tu não és o Ricardo, pois não? Tu não te lembras de mim, pois não?

Ele engoliu em seco. Não sabia mesmo o que fazer. É evidente que não era o Ricardo! Mas, apesar de tudo, era um tipo simpático. Ela não tinha sido obrigada a nada! 

- Como é que tu te chamas?, perguntou ela, irritada.

Ele esclareceu-a, honesto. Explicou que havia coisas na história que batiam certo. Lembrava-se dela, não sabia usar o Excel. Tirando o pormenor da Teresa, deviam ter-se conhecido mesmo, há uns anos atrás, em algum lugar. 

Então ela suspirou e disse:

- A culpa é minha.

Ele perguntou porquê e ela explicou:

- Tenho péssima memória. Lembro-me das caras, mas não me lembro dos nomes das pessoas. É um bocado chato, não é?

Ele encolheu os ombros, mas lá lhe foi explicando que o importante é que tinham achado graça um ao outro. Não eram os nomes, ou de onde é que se conheciam. Recomeçaram a beijar-se, e ela acabou por concordar, embora já não se lembre bem com quê. 

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Terça-feira, 30.10.12

Salvar a Pátria!

Estavam os três sentados à mesa do restaurante, dedicados a salvar a Pátria à hora do jantar. Entre eles, já tinham conseguido reunir para aí umas trinta ideias diferentes que conduziam ao mesmo objectivo, reduzir a despesa do Estado.

Um defendia que era preciso despedir funcionários públicos, não fazia sentido nenhum eles terem empregos garantidos para a vida. O outro proclamava que havia pelo menos 100 institutos do Estado que não serviam para nada, e deviam ser demolidos por um "bulldozer". Ao terceiro, enfurecia-o que os restaurantes fugissem todos ao IVA, e descobrira de imediato uma forma blindada de os obrigar a pagar o que ganhavam à custa de pessoas como eles, que vinham ali beber umas imperiais e comer uns caracóis. 

Entusiasmados, eram três génios à volta da mesa, perfeitamente capazes de resolver qualquer dilema nacional. 

- Ninguém nos mandou viver acima das nossas possibilidades! - rugia o primeiro.

- Isto é tudo culpa dos políticos e da mania das auto-estradas - urrava o segundo.

- Se não fosse a "troika" a pôr ordem nisto, não terminava o regabofe! - indignava-se o terceiro. 

Unidos naquele compromisso de ajustar o país entre o couvert e a sobremesa, lançavam-se em diatribes espectaculares contra a balbúrdia geral da nação.

- Que mal é que tem cortar nos subsídios de desemprego? - questionava o terceiro.

- As pessoas deviam era pagar nos hospitais, assim não passavam a vida a correr para lá cheias de dores! - exclamava o segundo.

- Em Portugal, anda tudo à mama do Estado, isto tem de acabar! - explodia o primeiro.

Nisto, entram no restaurante três mulheres, todas afiadas para a noite, e sentam-se na mesa ao lado da deles. O terceiro pisca o olho ao segundo. O primeiro foi o último a dar por elas, e ainda estava a falar da corrupção e do Sócrates, já os outros dois se tinham desligado da conversa e miravam, com uma pontinha de desejo, as senhoras da mesa do lado. Em especial uma delas, que tinha um decote generoso, uma saia curta, e meias pretas. 

- Adoro meias pretas - murmurou o segundo.

- Quem não adora? - questionou o terceiro.

De repente, o primeiro calou-se, esqueceu a política e a salvação nacional, e fixou-se no decote daquela mulher que já sorria na direcção dele. Animado, virou-se para os amigos e comentou, em voz baixa, para não ser ouvido na mesa das senhoras:

- Que belo par de mamas...

Esqueceram o país num segundo, meteram conversa com as moças, e quando regressaram às respectivas casas, no final de uma longa e divertida noite, já nenhum se lembrava da Pátria em perigo. 

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Segunda-feira, 29.10.12

O que se passa com o cabelo das mulheres?

A maior diferença entre os homens e as mulheres não é o sexo, mas o cabelo. No sexo, até somos parecidos. Suamos, gememos, usamos a boca e as mãos, gostamos de antecipar com gozo e descansar no fim. Mas nos cabelos, somos totalmente diferentes. Os homens pensam muito pouco no cabelo, mas as mulheres só pensam no cabelo. 

Não quero com isto dizer que as mulheres não pensam em mais nada, bem pelo contrário. A grande diferença é que as mulheres, além de pensarem por dia em milhares de coisas, pensam todos os dias e quase todas as horas também no cabelo, enquanto os homens pensam em muitas coisas por dia, mas só pensam no cabelo para aí duas ou três vezes por mês, pois quando se penteiam de manhã quase nem reparam no que estão a fazer. 

O cabelo das mulheres é uma preocupação permanente (a expressão é adequada, embora não queira dizer que elas estejam com uma "permanente"), é uma angústia diária mas também uma fantasia contínua. Logo de manhã, pensam nele, admiram-no, lavam-no, secam-no, penteiam-no, voltam a penteá-lo, criticam-no por estar em má forma, por ser teimoso ou caprichoso, por ter manias, por estar fofo demais ou meramente baço.

A meio da manhã, voltam a olhar para ele, a fazer-lhe festas, a planear mudá-lo ou a repensá-lo, coisa que virão a repetir antes do almoço, a meio da tarde, à chegada a casa, antes do jantar, depois do jantar, antes de deitar e quando se levantam pela última vez antes de adormecerem, só para ir espreitar como é que poderia ficar o cabelo se lhe fosse aplicada uma certa ideia com que andam na cabeça.

Já pensei em organizar um dicionário específico para compreender as 300 coisas diferentes que uma mulher pode fazer ao seu cabelo. Desisti quando percebi que eram bem mais de 300, e que por mais que me esforçasse iria ter imensa dificuldade em distinguir as diferenças entre "nuances", "madeixas", "brushing", "extensões", "permanentes", "colorações", "descolorações", "desfrisar", e mil e outras expressões que agora não recordo, mas que pertencem a uma linguagem típica feminina, o "cabelês", uma explosiva mistura entre francês, inglês, latim e crioulo, com leves influências de maori e paquistanês, que só é falada por mulheres e que o cérebro masculino não consegue compreender, quanto mais falar correctamente. 

Isto não quer dizer que não goste dos cabelos das mulheres. Eu gosto muito. Sejam eles lisos ou encaracolados, curtos ou compridos, com rabo de cavalo ou ganchos, apanhados ou soltos, loiros, morenos ou ruivos, todos me agradam, dependendo do dia e da hora. Quer dizer, não gosto de tudo. Por exemplo, não gosto de cabelos "armados", tipo jubas de leão, esse género volumoso que às vezes se vê em certos anúncios e algumas festas. Nem percebo muito bem como é que eles ficaram assim, parecem uma instalação de arte falhada. 

Mas o que eu gosto mesmo é da alegria feminina que nasce quando as mulheres se sentem bem com o seu cabelo, o que é normalmente na meia hora seguinte a terem vindo do cabeleireiro, ou de o terem penteado em casa. As mulheres ficam radiosas, os olhos brilham de felicidade quando se sentem bem com os seus cabelos. É como se um raio de luz as tivesse atingido, um pequenino milagre tivesse acontecido na vida delas. É o momento certo para os homens as elogiaram, não só porque é verdade, mas sobretudo porque elas gostam muito de ser elogiadas quando os cabelos delas estão no momento "Premium" do dia. É preciso estar à coca, e saber aproveitar esse instante maravilhoso para as mimar e amar, pois é o momento mais feliz da existência feminina diária, e não se deve deixar passar sem o celebrar devidamente.

Até porque costuma ser um momento breve, como o momento em que o sol toca na água antes de se pôr. Dez ou quinze minutos mais tarde, já há um leve atrito entre uma mulher e o seu cabelo, uma ponta solta, um caracol maroto que se desfez, um irritante tufinho que teve a suprema lata de se mexer imprevisivelmente e lançar uma pequenina sombra sobre a alma daquela rapariga.

Portanto, se falhar o momento certo do elogio, não arrisque muito. É perigosíssimo passar por forçado. As mulheres têm um radar que percebe de imediato quando os homens estão a dizer coisas só por dizer, e não gostam disso. Por mais estranho que pareça, as mulheres preferem uma crítica mais franca a um indiferente "está óptimo", dito sem convicção. 

Mas atenção, que a fronteira entre franqueza e brutalidade é, no que que toca ao cabelo feminino, mais fina que o próprio cabelo. Ser desagradável com uma mulher, dizendo que não se gosta do cabelo dela, é semear uma ventania na relação que pode originar numa tempestade. É que não gostar do cabelo de uma mulher é o mesmo que não gostar dela, o que gera um enorme melodrama doméstico que colocará em risco essa noite, mas sobretudo a crença dela de que seja mesmo amada pelo homem. São muitos os homens que, por esse mundo fora, tiveram de explicar às mulheres que gostavam mesmo delas, depois de terem dado um passo em falso, criticando o seu cabelo.

Aliás, o célebre "vê-se mesmo que já não gostas de mim" nasceu numa certa noite, quando um homem das cavernas olhou para o "brushing" espantoso da sua mulher das cavernas e perguntou, apontando com a moca para o seu cabelo: "o que é esse ninho de ratos na tua cabeça"? O resto é história universal...

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Sexta-feira, 26.10.12

Um amor antigo (parte IV e fim)

Na telenovela, o marido matara a tiro a mulher e o amante dela, e foi nisso que ele pensou quando a encontrou naquela festa, acompanhada. Porque é que se lembrou desse melodrama sangrento? Não fazia qualquer sentido, eles não eram casados, não eram sequer namorados, ela não o estava a trair por estar com outro homem. Além disso, achava que tiros e honra eram coisas antigas, já não faziam qualquer sentido nos nossos tempos. Contudo, lembrou-se do episódio, da pistola, dos mortos nos lençóis, e nesse momento percebeu que nunca a iria perdoar, nunca iria esquecer o que se passara muitos anos antes, quando ela o traíra. Eram namorados apenas, muito novos, mas cornos são cornos, em qualquer idade doem e raramente se apagam da memória.

Viu-a ao fundo, encostada ao bar. Parecia divertida, falava com um homem muito animada. As cabeças quase se tocavam, murmuravam ao ouvido e olhavam nos olhos um do outro. Era fácil de perceber que estavam muito concentrados, e isso tinha um significado tão cristalino que ele não precisou de observar mais, e colocou naquele momento um epitáfio sobre o seu amor antigo. Por ali não ia mais.

Mas, não abandonou a arena, a festa até estava divertida, a música recordava os anos 80, um hábito que ele adorava, e deixou-se ficar. Pediu um whisky, encontrou amigos, falou da crise e de futebol, e foi conhecendo algumas mulheres que por ali passavam. Pelo canto do olho, ia espreitando, a ver se os via, e lá para as duas da manhã cruzaram-se, perto da pista de dança. Ela vinha à frente, o amigo atrás, ele sorriu e beijaram-se na cara. Ela apresentou o amigo, que tinha sotaque do Porto, trocaram duas ou três palavras de ocasião, e seguiram o seus respectivos caminhos. 

Ele gostava de dançar e na pista, animado, viu alguém que o interessou, meteu conversa, exibiu-se. Meia hora mais tarde estava encostado ao bar outra vez, mas agora já acompanhado por uma rapariga bem mais nova do que ele e bem mais gira do que ela, o seu amor antigo. Ou pelo menos era isso que ele achava agora, bem bebido e ainda ressentido do abandono a que ela o votara. 

O ressentimento é uma motivação como outra qualquer, e portanto investiu na moça. Trocaram beijos rápidos, e foi depois de um desses que sentiu uma mão nas costas. Não foi uma mão suave, foi mais um beliscão. Era ela, e estava sozinha. O amigo com sotaque tinha desaparecido, ou pelo menos não estava à vista. Queria esclarecer alguma coisa, mas ele já estava um bocado tocado, por isso não entendeu a pergunta.

- O quê?

Baixou o pescoço, encostou o ouvido mais próximo da boca dela, esforçando-se. Ela repetiu o que dissera.

- Porque é que não combinaste para virmos juntos?

Ele encolheu os ombros. Não valia a pena inventar desculpas. E ripostou:

- Mas tu não perdeste tempo...

Ela revirou os olhos, irritada:

- É um amigo, estava cá hoje, veio comigo à festa.

Nesse momento, talvez o amor antigo deles ainda tivesse salvação, mas a rapariga com que ele já trocara uns beijos decidiu intervir e perguntou, em voz alta, para que ela ouvisse bem:

- Então, não íamos até ao carro?

Ela ficou estupefacta, limitou-se a abanar a cabeça e sorriu, dizendo em voz baixa:

- Divirtam-se...

Afastou-se, foi ter com o amigo do Porto que estava à espera dela, como um fiel guarda-costas. Foram dançar, e provavelmente a história deles pegou fogo a partir dessa noite, mas isso ele já não sabe, há meses que não a vê. Só sabe é que confirmou o que pensava desde a primeira vez que tinham estado juntos, que ressuscitar um amor antigo raramente resulta. 

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Terça-feira, 23.10.12

Um amor antigo (parte III)

É evidente que, uns dias depois, foi ele que pegou no telefone e falou para ela. Os homens dão muito mais importância ao sexo do que as mulheres, e ele tinha ficado fascinado, porque agora ela fazia "aquilo", e ainda por cima fazia bem, mesmo muito bem. Tinha pensado nisso, várias vezes, à noite na cama. A imagem dos dois, a recordação daqueles momentos tórridos, era uma fantasia que renascia contastantemente no seu cérebro.

Portanto, não resistiu. Queria mais, mais daquele amor antigo tornado presente, mais do que ela não fora mas agora era. E isso sobrepôs-se a tudo, até ao seu instinto de precaução. A força do desejo fê-lo esquecer a traição de que fora vítima do passado, tão antiga que parecia diminuída na sua gravidade, e a ambiguidade dela no presente. Nos homens, é muitas vezes assim, o deslumbramento sexual tolda-os, como toldam meio litro de cerveja pela goela abaixo, ou dois whiskies duplos. 

Portanto, aqui vai disto, telemóvel e ela atende. Parece contente, mas depois das banalidades não se revela disponível. Tem programas para os próximos dias. Não, não vai ao Porto outra vez, e ri-se quando ele fala disso, comenta "tu és mesmo de ideias fixas". Mas, é claro que não lhe conta que um dos amigos do João, que ela conheceu na festa no Porto, troca com ela mensagens todos os dias no Facebook. Ela aprendeu, com a vida, que certas coisas não são para se contar aos homens, porque eles nunca mais se esquecem disso, e vão repeti-las, vida fora, como uma menemónica irritante, sempre que se zangarem com ela.  

Entretanto, ele acha que ela se está a fazer de cara. Pressentiu a sua fragilidade negocial - foi ele que falou, quem pega no telefone é quem está mais dependente - mas já a transformou numa arma de arremesso contra a recusa dela.

- Tu é que querias estar mais vezes juntos...

Ela sorri, sabe que tem dúvidas, o seu coração não está decidido, não o quer totalmente, mas também não o quer perder, pois não tem nada ainda a que se agarrar, a não ser umas breves frases escritas num computador a mais de 300 quilómetros de distância. Decide que é melhor não o irritar, aceita vê-lo, e lá combinam o seu terceiro encontro, outra vez em casa dela. 

Quando ele toca à porta, ela está a acabar de se arranjar. Beijam-se, ela com o secador na mão, ele com nova garrafa de vinho tinto e novos queijos. Ela pensa que ele devia variar, talvez presunto ou mesmo paté fosse boa ideia, mas não o diz.

Ele está apenas deslumbrado com os cabelos dela. O que é que se passa com os cabelos das mulheres, pensa? Porque é o cabelo tão importante para elas ? Segue-a de regresso à casa de banho, observa-a a secar as pontas molhadas, e depois a pentear-se. Gosta dos longos caracóis dela, mas gosta ainda mais do rabo de cavalo que ela costumava fazer, mas esta noite não faz. Ela olha-se ao espelho, passa mais uma vez a escova (ou será um pente?) no cabelo, e parece satisfeita com o resultado. 

Meia-hora mais tarde, o cabelo dela ficou um desastre, pelo menos é disso que ela se queixa. Cabelo de mulher depois do sexo é como um lençol depois do sono, amarrotado, com volteios imprevisíveis, curvas e lombas que ninguém sabe como se formaram. O sexo foi bom, pensa ele, mas ela convenceu-se de que o seu cabelo parece o de uma boneca animada de um cartoon televisivo, depois de apanhar um choque eléctrico. Afasta-se dele, volta à casa de banho, e passa muitos minutos a pentear-se, e a chegar à conclusão que continua com dúvidas. Depois, regressa à cama, e decide vestir-se, o que o surpreende.

Ele quer mais, gostava de repetir, ficar ali no bem bom, quem sabe até dormir. Ela não, diz que não quer estragar o cabelo, passa por fútil por ter usado tal desculpa, mas não se importa. Está angustiada, já percebeu que o único motivo pelo qual ele regressou foi o sexo, e isso assusta-a. Não porque não tenha gostado, até gostou, mas porque sabe que o sexo para eles está a tornar-se um biombo, atrás do qual ficam escondidas as verdades mais profundas. Ela duvida que ele consiga esquecer o passado, nem mesmo o sexo será garantia segura, e pressente que, se ficarem juntos, vai ter de ouvi-lo a vida toda. 

Portanto, despedem-se mais uma vez, sem grandes combinações. Ele finge que não se importa, e depois da porta dela se fechar, jura a si próprio que não voltará a falar-lhe. Já no sofá, ela sente-se estranha, gostava de gostar mais dele, de o querer ali, mas não é isso que sente. Chora um pouco, e depois liga o Facebook e conversa com o amigo do Porto.

Mas, a história é capaz de não acabar aqui. 

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Quinta-feira, 18.10.12

Um amor antigo (parte II)

Uma semana depois, o telefone dele voltou a tocar. Quer dizer, o telefone tocava muitas vezes ao dia, mas aquele toque era especial. Era o toque que ele escolhera para ela, o seu amor antigo que regressara à procura de mais. Tracy Chapman, "Baby Can I Hold You". Tinham ido ao concerto juntos, um mês antes de ela lhe pôr dois palitos grossos no alto da testa. Escolhera-o para saber que era ela e para não a atender, por se lembrar do que sofrera, da "saliva que gastei para te mudar", como cantava o Rui Veloso, noutro concerto a que tinham ido juntos. "Foda-se, já passaram mesmo muitos anos", pensou ele antes de atender o telefone, pois quando se tratava de mulheres nunca conseguia cumprir o que prometia a si próprio quando estava sozinho.

- Olá, disse ela, a rir.

Porque é que ela ria? Será que era tão convencida ao ponto de pensar que ele estaria sempre pronto para ela? Ele não sabia que era nervosismo, mas é sempre difícil imaginar o que vai na cabeça de outra pessoa.  

- Olá, tudo bem?

Porque é que perguntava se estava tudo bem com ela se já sabia a resposta? 

- Tudo, disse ela. E contigo?

Está sempre tudo bem, pensou ele. É um bordão irritante, nunca ninguém diz, logo a frio, "estou na merda, farto de tudo e de todos". É como quando perguntamos "o que tens feito?", e do lado de lá respondem "nada de especial", e apetece logo ripostar "e que não seja de especial, o que é que tens feito?". 

- Tudo bem, respondeu

Não era dado a originalidades, embora as exigisse aos outros. Decidiu ir direito ao assunto e perguntou:

- A festa no Porto, que tal?

Ela nunca iria admitir que fora uma decepção, o João não lhe ligara nenhuma, estava casadíssimo, e nenhum dos amigos deles era interessante. Havia vários que eram giros, dois tinham investido nela, mas nem sabiam conversar. Eram egocêntricos, só falavam deles, do surf que faziam, das festas a que tinham ido e de quantas caipirinhas haviam bebido. Pilinhas com pilhas, tinha pensado ela, desconsolada, no regresso pela A1 no Domingo. E apesar de um deles já a ter abordado no Facebook ontem, não estava para aí virada.

- Foi gira, deitei-me às seis da manhã.

E aposto que sozinha, pensou ele, senão não me estavas a falar hoje. 

- Queres ir ao cinema?, perguntou ela.

- Hoje não posso, respondeu ele.

Devia ser dia de jantar com os filhos, foi o que ela concluiu. 

- Não tem de ser hoje, podemos ir amanhã, ou no sábado.

Quem é que vai ao cinema ao sábado, pensou ele? Está tudo cheio, mesmo com a crise.

- Mas se não quiseres cinema, podemos alugar um filme em casa, no Meo. 

Isso já lhe parecia mais interessante, refletiu ele. Casa, filme, sofá, sexo, cama, mais sexo: é a ordem natural das coisas.

- Amanhã?, perguntou ele.

Ficou decidido. Falaram de mais assuntos, mas o importante já estava dito, e no dia seguinte ele tocou à porta dela, com uma garrafa de vinho e dois queijos comprados nas Amoreiras. Para a ceia, que ambos já tinham jantado à pressa, uma qualquer comida retirada de uma qualquer embalagem descongelada no microondas, que é o jantar do costume de quem vive sozinho e tem mais pressa que tino. 

- Obrigado, agradeceu ela.

Ele abriu o vinho, ela foi buscar um prato e uma faca, cortaram os queijos e no fim falaram. Sobre o que lhes tinha acontecido, sobre o que lhes podia acontecer. Usaram expressões como "precisamos de tempo", "eu não sei bem o que quero", "o problema é meu", "depois de um divórcio é complicado gostarmos de alguém", mas cerca de vinte minutos depois ele já estava com as mãos nas cuecas dela (que reparou que eram novas), e a partir daí foi impossível parar. Depois, semi-nus e ainda no sofá, demoraram algum tempo a estabilizar a respiração, e por fim riram-se, bem dispostos, e voltaram a comer queijo e a beber vinho. Ela perguntou se ele queria ver o filme, e ele sorriu e disse:

- Já vi.

Ela riu-se, divertida. Ele observava-a com atenção, curioso, e uns segundos depois perguntou:

- Onde é que aprendeste a fazer...aquilo?

Ela revirou os olhos. O que raio era esta pergunta? Encolheu os ombros, mas não respondeu.

Então ele murmurou:

- No meu tempo, não havia disto.

Era verdade, no tempo em que ele a namorara, ela era mais contida, mas depois tinha estado casada muitos anos, sempre às ordens, e agora que se soltara das amarras do marido mais valia aproveitar o que aprendera. Sorriu-lhe:

- Tenho visto muitos filmes...

Raça da miúda, esperta como um alho. Teria sido inteligente da parte dele parar por aqui, mas a curiosidade que o assaltava levou a melhor. Perguntou-lhe:

- Desde que te separaste, sou eu o primeiro?

Ela olhou para ele um bocado desiludida. Porque é que os homens davam tanta importância aos outros homens? Se ela quisesse estar com outro homem não estaria ali com ele, no sofá, a beber vinho, a comer queijo, a fazer "aquilo". Decidiu ripostar:

- E eu, vou ser a última?

Ao ouvi-la, ele sentiu um ligeiro mal estar interior. Não gostava de pensar que a boa vida que tinha tido nos últimos meses podia acabar. Tinha tido muitas mulheres e sabia que cuecas novas eram sinal de muito sexo. Mas, ela era apesar de tudo diferente, era especial. E agora até fazia "aquilo". 

- Não nos vamos precipitar, disse ele. Vamos andando e vamos vendo.

Ela olhou-o nos olhos e perguntou:

- E enquanto vais andando e vendo, vais andando e vendo outras pessoas?

Isto começou a enervá-lo. O que é que ela queria? Queria "ser namorada", queria um "voto de fidelidade", uma promessa na Igreja, uma declaração reconhecida pelo Notário? 

- E tu?, perguntou ele. Vais mais vezes ao Porto?

A conversa estava em risco de azedar, por isso ela premiu o botão do comando e começaram a ver o filme na televisão. Hora e meia mais tarde, ele saiu de casa dela, não combinaram nada certo para os dias seguintes, mas a história é capaz de não acabar por aqui. 

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Segunda-feira, 15.10.12

Um amor antigo

Diz-se que muitas mulheres, quando acabam um namoro ou um casamento, vão primeiro à procura de um amor antigo para as consolar. Alguém que as encantou no passado, alguém que conhecem, a quem já deram a mão, já beijaram na boca, alguém em cujo corpo já tocaram. O desconhecido é sempre um território assustador, e embora a novidade seja sedutora e até empolgante, quando se anda ainda com uma dor cá dentro, convém diminuir os riscos. E foi assim também com eles.

Ele estava divorciado há um, (ou seriam dois anos?), mas continuava a aproveitar o tempo perdido, coleccionando namoricos soltos ou noitadas tórridas sem consequências na cardiologia amorosa. Ela fechara por esses dias o último capítulo com o marido, e estava a descobrir como renovar a vida e as cortinas de casa. Foi ela que o abordou no Facebook. O costume, "como estás?", "tudo bem", (está sempre tudo bem mesmo quando está mal) e lá acabaram por combinar um almoço. É uma refeição menos óbvia que um jantar, normalmente não são tão altas as expectativas carnais. É claro que era tudo a fingir, eles no fundo queriam os dois, mas era cedo, mais valia almoçar primeiro.

Acabaram na cama, em casa dele, a meio da tarde. Depois do sexo, ela chorou, era a primeira vez em muitos anos que dormia com outro homem que não o marido, e isso emocionou-a. Ele ficou com dúvidas, será que ela não tinha gostado? Mas, sempre sentira carinho e ternura por ela, mesmo sabendo que fora ela que o deixara, uma noite há mais de quinze anos, quando eram namorados. Abraçou-a e beijou-a e quis saber o que se passava.

Ela fungou, limpou as lágrimas, ajeitou o cabelo num rabo de cavalo feito à pressa e perguntou:

- E agora?

Ele adorava vê-la de rabo de cavalo. Ainda tinha uma fotografia antiga, tirada numa praia do Algarve, no Inverno, os dois de casacões e botas, muito mais novos, onde ela estava de rabo de cavalo. Já não se lembrava onde estava a fotografia, talvez no pequeno baú, encostado ao sofá da sala. Mas lembrava-se do rabo de cavalo e disse-lho:

- Adoro ver-te de rabo de cavalo.

Ela sorriu, achou querido ele dizer aquilo, mas não admitiu que ele desviasse a conversa. Repetiu a pergunta:

- E agora?

Ele piscou os olhos, começou a lembrar-se que ela era persistente, era uma das coisas que ele não adorava nela. Adorava o sorriso, o rabo de cavalo, o rabo propriamente dito, as pernas longas, a forma como ela se vestia, sempre com muito bom gosto. Mas não adorava a persistência. Respirou fundo:

- Agora? Vamos falando, temos tempo. Hoje não posso, é dia de jantar com os meus filhos, mas amanhã podemos combinar. Ou no fim de semana.

Ela nem se lembrava bem quantos filhos ele tinha, seriam dois ou três? Mais os três dela eram seis. E amanhã também não podia, já tinha combinado ir jantar com três amigas, divertir-se, dançar, apanhar um pifo para esquecer as chatices. Mas, foi aquele "ou no fim de semana" que a enervou. Não era amanhã "e" no fim de semana, era amanhã "ou" no fim de semana. Como se ele não quisesse estar com ela em ambas as situações, como se ele tivesse uma vida muito cheia e não tivesse muito tempo para ela.

- Amanhã não posso, tenho um jantar.

Ele encolheu os ombros, sorriu-lhe:

- Então combinamos no sábado.

Aquilo irritou-a. Quem é que ele pensava que ela era? Será que pensava que ela estava disponível sempre que ele quisesse? 

- Há uma festa no sábado, no Porto.

Ele ergueu as sobracelhas. Não lhe dava jeito ir ao Porto, sábado ia fazer surf, e no domingo de manhã já tinha combinado com o pai jogar ténis. 

Ela perguntou:

- Não queres ir?

Ele riu-se:

- Não é não querer, mas já tenho coisas combinadas.

Ela olhou para ele, e ele achou que ela podia estar a pensar que ele tinha outras raparigas com quem saía. Era verdade, mas não era por isso que não podia ir ao Porto.

- O quê? - perguntou ela.

Ele encolheu os ombros e explicou: o surf, o pai, o ténis. Ela ouviu-o séria e depois perguntou:

- Não podes desmarcar? Era giro, íamos os dois ao Porto, ficávamos num hotel.

Sim, pensou ele, era giro. Perguntou:

- De quem é a festa?  

Ela sorriu e explicou: era de uma amiga que era casada com o João, que era o homem por quem ela o trocara há muitos anos.

Aquilo incomodou-o, nunca se esquecera daquele par de cornos. Ficou sério e disse:

- Acho que prefiro o surf e o ténis.

Ela sorriu, fingindo-se espantada:

- Não queres ir por causa do João?

Ele permaneceu em silêncio e ela riu-se:

- Por favor, isso já foi há tantos anos! Não me digas que ainda não esqueceste!

Além da persistência, ele lembrava-se agora perfeitamente que havia outra coisa que ele não adorava nela, que era o facto de ela não lhe dar especial importância. Então, decidiu provocá-la:

- Ninguém esquece nada. Olha para nós os dois. Estamos aqui porque não nos esquecemos. Se não nos conhecessemos, se calhar isto nunca iria acontecer...O passado interessa, claro que interessa.

Foi ao ouvi-lo falar no passado que ela começou a pensar no João. Será que ele ainda sentia alguma coisa por ela? Será que quando se vissem, no sábado, ia sentir vontade de estar com ele? Os ex-namorados olhavam sempre para ela com uma cara...

Foi nesse preciso momento que ele se levantou da cama e se começou a vestir. Vira nela o mesmo que vira há muitos anos atrás, uns dias antes de acabarem namoro. Vira-a a pensar noutra coisa, o que nas mulheres pode ser sempre outro homem, e como foi isso que acontecera no passado, era melhor ele não ficar por ali, não fosse acontecer-lhe o mesmo outra vez. Razão tinha o seu melhor amigo, que dizia que as mulheres do passado nunca são as do futuro. 

- Não vale a pena ficar chateado - disse ela, ao vê-lo a vestir-se.

Ele fingiu que não estava chateado, ela sorriu-lhe e também fingiu que acreditava. Quando ele a deixou à porta de casa, prometeram voltar a falar-se, um pouco embaraçados. A única coisa certa é que ele não iria ao Porto, ao contrário dela. Mas, é evidente que esta história não acaba aqui... 

publicado por Domingos Amaral às 12:04 | link do post | comentar | ver comentários (2)
Segunda-feira, 08.10.12

Encontro no supermercado...

Foi no corredor dos leites. Ele procurava leite meio gordo, ela leite magro. Ele empurrava um carrinho já atulhado de paletes de cerveja, amendoins e cajus, batatas fritas, e até, pasme-se, douradinhos! Ela tinha começado agora, só colocara no carrinho dois iogurtes gregos e uns frutos secos, talvez pistachios, ele não sabia, pois nem teve tempo para verificar, uma vez que dera com ela de costas, esticada em cima do expositor, a tentar chegar com a mão a um pacote qualquer.

Ele reparara logo nos calções de jeans dela. Ou melhor, ele repara na bordinha das nádegas que apareciam junto às ripinhas descosidas dos calções. Eram lindas, bem desenhadas, graciosas, capazes de causar apoplexias gerais por esse mundo fora. E estavam ali, em promoção, à frente dele. Lentamente, passou com o carrinho por ela, admirando também as suas belas pernas, as botinhas curtas que lhe envolviam os pés, a camisa laranja que usava, o rabo de cavalo com que apanhava o cabelo castanho escuro.

Foi nesse momento que ela bufou, enervada, incapaz de chegar à embalagem de leite magro. Recolheu o braço e olhou para ele, sorrindo. Ele sorriu-lhe também, e vendo-a embaraçada, perguntou:

- Precisa de ajuda? 

Apesar de envergonhada, ela não desfez o sorriso, e confirmou com um aceno de cabeça. Era gira, embora talvez o queixo fosse um pouco longo demais. Ele avançou sobre o expositor, esticou o braço direito, apanhou a embalagem de leite magro, puxou-a pela alça, e depois apoiou-a no braço esquerdo, dividindo o peso. Em poucos segundos, os seis pacotes de leite magro repousavam no carrinho dela, ao lado dos frutos secos e do iogurte grego.

Ele achou estranho ela querer tanto leite, mas obviamente era demasiado cedo para uma pergunta tão privada, por isso limitou-se a comentar:

- Se calhar, eu também devia levar leite magro, pelos vistos dá um óptimo resultado!

Ela riu-se, e olhou para o carrinho dele. 

- Melhor do que batatas fritas e cerveja.

Ele acenou com a cabeça, dando-lhe razão, e justificou-se:

- Vou ver o futebol com uns amigos, lá em casa.

Ela riu-se outra vez, radiosa e amável.

- Estou a ver que somos ambos previdentes.

Ele estranhou, franziu a testa, sem perceber. Ela manteve o sorriso e apontou para os carrinhos:

- Eu compro leite para duas semanas, você faz compras à segunda para o próximo sábado.

Ele ficou fascinado. Numa única frase, ela dera-lhe a entender que não só vivia sozinha, como também que gostava de futebol, pois sabia perfeitamente que só haveria jogos no fim de semana.

Confiante, ele sorriu-lhe:

- Se for do Sporting, convido-a já para irmos esquecer tristezas juntos...

Ela riu-se, lisonjeada, mas abanou a cabeça.

- O meu pai é catalão, sou do Barça.

Ele fingiu-se desapontado, encolheu os ombros.

- Então não tenho qualquer hipótese.

Foi a vez dela franzir a testa:

- Não me diga que é como as equipas que jogam contra o Barça?

Suspirou, agora era ela que fingia estar desapontada:

- Quase todos desistem cedo demais...

Ele sentiu-se ferido no seu orgulho, e olhou-a nos olhos. Ela aguentou a força do olhar dele, com um sorriso matreiro nos lábios. Ele perguntou:

- A melhor defesa é o ataque?

Ela riu-se e murmurou:

- Já vi que é de transições rápidas.

Ele semicerrou os olhos, estava lançado:

- Olhe que eu faço um passe em profundidade.

Avançou na direção dela, e ela recuou, piscando os olhos. Ele tocou no carrinho dele, afastando-o para a direita, e depois tocou no carrinho dela, afastando-o para a esquerda. O dela guinchou um pouco, estava com uma roda empenada.

Já em frente dela, ele afirmou:

- Com duas tabelas, ultrapassei a sua defesa...

Ela quase se encostou ao expositor, e ele imaginou as bordinhas das nádegas dela, a espreitar pelas ripinhas dos jeans. Investiu na direção da baliza, mas de repente ela gritou, apontando com o dedo para a sua esquerda:

- Fora de jogo, fora de jogo! 

Surpreendido, ele olhou para a sua direita, para ver se o árbitro auxiliar tinha levantado a bandeirinha. O estádio inteiro revoltava-se a assobiar, foi isso que ele pensou quando viu um homem alto, com um ar sério, a vir na direção deles. Por um segundo, admitiu que fosse o pai dela, o catalão. 

O homem sério perguntou:

- Que se passa, meu amor? O que é que este tipo quer?

Ela sorriu, divertida, e esquivou-se dali à pressa, empurrando o carrinho. Olhou para o marido, (ou seria namorado?), abraçou-o e acalmou-o: 

- Nada, meu amor. Acho que quer leite meio gordo, só isso...

Afastaram-se para longe dele, o carrinho a chiar da roda, a embalagem de leite magro lá dentro, as nádegas dela ainda a mostrarem o rebordo. Nunca mais se viram. Na caixa, enquanto pagava, ele não levantou a cabeça dos sacos, e nem reparou que na fila, atrás dele, estava outra rapariga bonita. Também de calções...   

publicado por Domingos Amaral às 12:13 | link do post | comentar
Quinta-feira, 27.09.12

Um casal e as 50 sombras de Grey

Estavam lado a lado, na cama. Ela lia as "50 Sombras de Grey", ele consultava o seu iPad. De vez em quando, ela suspirava, mas ele nem ligava, pois sentia que já não existia entre eles muito "chamego", como diz a Zarolinha da telenovela Gabriela. Continuaram assim, ela a ler e a suspirar, ele a ver páginas sobre gadgets na net.

Algum tempo depois ela pousou o livro à cabeceira, murmurou um "boa noite" que ele retribuiu, desligou a luz do seu candeeiro, e enrolou-se para dormir, virando costas ao marido. Este deixou-se estar, mas dez minutos depois pressentiu que ela já estava ferrada a dormir e começou a visitar sites pornográficos no seu iPad. Num deles, descobriu uma loira espectacular, de grandes pernões, seios volumosos e um sorriso malandro na cara. Sentiu a excitação a chegar e levou a mão ao baixo ventre. 

Precisamente nesse momento, a mulher soltou um gemido. Não foi um gemido qualquer, era um gemido parecido aos que ela soltava quando...Foi por isso que ele franziu a testa, surpreendido. Segundos depois, ela voltou a gemer. Ele reparou também que ela mexia a perna esquerda ligeiramente, e que tinha o punho esquerdo fechado. Aquilo enervou-o.

Num gesto brusco, pousou o iPad fechando a capa, tocou-lhe nos ombros, abanou-a, e ela acordou, estremunhada. Piscou os olhos e olhou para ele:

- O que foi?

- O que foi pergunto eu! - exclamou ele, com ar sério.

Ela piscava muito os olhos, sem perceber.

- O que eram esses gemidos? - perguntou ele.

Ela sentou-se na cama, ainda a piscar os olhos.

- Gemidos? Que gemidos?

Ele imitou-a, num tom de voz forçado e ela sorriu e mentiu.

- Eu..., eu estava a ter um pesadelo.

Ele indignou-se:

- Desculpa lá, mas isso não era um pesadelo! 

- Então? - perguntou ela, com ar inocente.

Ele respirou fundo, tentando controlar-se:

- Tu estavas a ter um sonho erótico! Parecia que estavas a ter um orgasmo!

Ela abriu muito os olhos, deu uma pequena gargalhada, quase infantil, de menina apanhada em contrapé, e reconheceu a verdade.

- Pois estava!

Ele ficou ainda mais enervado. Ela percebeu o que ele temia e tentou acalmá-lo, com mais uma mentirola.

- Mas...o sonho era contigo! 

Ele esperou, em silêncio, um esclarecimento mais detalhado.

- Estávamos a fazer amor...Eu estava de joelhos no chão e tu puxavas-me os cabelos por tráz, e possuías-me...

- Eu? - perguntou ele.

- Sim, tu...e davas-me palmadas no rabo!

Ele ficou siderado, estupefacto a olhar para ela.

- Estava a ser bom... - murmurou ela.

Ele sentiu os primeiros sintomas de apoplexia, e gritou:

- Mas eu nunca te bati! Nem nunca te puxei os cabelos!

Ela revirou os olhos, exasperada. Ele prosseguiu, exaltado:

- E como é que sabes que era eu? Segundo percebo, estavas de costas, não era?

- Sim - confirmou ela

- Então, podia não ser eu!

Ela revirou de novo os olhos, encolheu os ombros e mentiu outra vez:

- Por favor, achas que eu não sei se és tu?

Na verdade, ela não tinha a certeza. No seu sonho, parecia que quem a possuía era o herói das "50 Sombras", o Grey. Mas como ele era um herói imaginário, a quem ela não conhecia a cara, podia muito bem ser quem ela quissesse.

Mas ele não estava convencido. 

- Se calhar era o Pedro, o teu ex, de quem gostavas tanto! Ou o teu chefe, toda a gente sabe que isso acontece a muitas mulheres!

Ela voltou a revirar os olhos, o seu chefe era gordo e baixo, e o Pedro há meses que não lhe enviava sequer um sms...

- Isto é do livro... - suspirou ela.

- O quê? - perguntou ele, sem perceber.

Ela pegou no livro "As 50 sombras de Grey" e mostrou a capa ao marido.

- É muito intenso, cheio de sexo, ao pormenor...

O marido estava de novo perplexo. Então ela, num gesto brusco e sem que ele a conseguisse impedir, pegou no iPad que estava pousado ao lado dele e disse:

- Li outro dia uma crítica, dizia que era "pornografia para mamãs", vou procurar na net para te...

Ao levantar a capa do iPad, ela descobriu a foto da loira explosiva e mamalhuda. Ficou paralisada. Depois, virou-se para ele:

- O que é esta merda? Andas a ver sites pornográficos? 

Atrapalhado, ele tentou justificar-se, meteu os pés pelas mãos, balbuciou uma mentirola qualquer.

Ela levantou-se da cama, irada. Nesse momento, umas das alças da camisa de noite tombou sobre o seu ombro e desceu pelo antebraço, deixando à mostra uma parte do seu peito. Ele viu o disco do mamilo dela a aparecer e gostou.

Mas ela estava furiosa.

- Mas o que é isto? Quem é esta gaja, esta badalhoca de perna aberta?

Ele tentou pacificá-la:

- Isso não interessa, é só uma fotografia. Essas gajas são todas iguais, cheias de mamas falsas, é só silicone...Não são como as tuas, bonitas e naturais...

Ela acalmou ligeiramente, mas não quis dar o braço a torcer.

- Eu não acredito nisto, és um porco!

Ele encolheu os ombros, sorriu-lhe.

- Vá lá, não fiques assim. Tu estavas a ler um livro, eu a ver a net, cada um para seu lado, aconteceu, não tem significado especial...Vem cá. 

Estendeu-lhe a mão, e ela, com alguma relutância, estendeu a dela. Voltou à cama, embora ainda com cara de amuada.

Ele abraçou-a, beijou-a no ombro e depois na boca e disse:

- És muito melhor que qualquer dessas mulheres...

Desceu os beijos para o pescoço e depois para o peito dela, excitado. Ela murmurou:

- Cuidado, os miúdos podem ouvir...

Ele levantou-se e foi fechar a porta do quarto. Entretanto, ela pegou no iPad. A loira da fotografia deu uma volta sobre si própria, enquanto o ecran virava de vertical para horizontal. Ela fez desaparecer a galdéria num segundo, e procurou um wallpaper novo para o desktop, um fundo mais apropriado. Depois, apagou a luz do lado dele e o quarto tomou uma tonalidade vermelha, picante e sensual. Ele murmurou:

- Uau...esse livro...

Começaram a tocar-se, a amassar-se, a rolar pela cama. Quando estavam já nus, e ele se preparava para entrar dentro dela, perguntou:

- Como é que era o teu sonho?

E ela explicou-lhe.

 

 

 

 

 

publicado por Domingos Amaral às 11:49 | link do post | comentar | ver comentários (4)
Terça-feira, 11.09.12

As 50 sombras de Grey (episódio 3)

Os pontos fortes de "As 50 sombras de Gray" são os e-mails trocados entre os dois personagens. São muito bem escritos, divertidos, intensos, cheios de pormenores notáveis, e só por isso acho que o livro vale a pena ser lido. Por isso e também pela cena das palmadas no rabo. Sim, há muitas cenas de sexo, umas mais habituais - na cama, na banheira - outras mais originais - no quarto escuro, com cabedais e chicotes - mas a cena mais divertida e bem escrita é para mim a das palmadas no rabo. A meio do livro, sentado na cama do quarto dela, Grey executa o seu primeiro castigo a Anastasia dando-lhe dezoito palmadas nas nádegas, uma a uma. Mas a execução é feita de forma a não doer demais, e até a excitar fortemente a rapariga. É divertido, eu diria mesmo hilariante, e uma pessoa fica verdeiramente convencida que o sexo e a violência podem andar lado a lado e ninguém deixar de gostar. Para mim, essa é a cena mais genial, e não precisou de ser especialmente "kinky" ou mostrar Grey como um "tarado sexual". Bastaram umas palmadas de mão aberta naquele rabo giro e temos o sucesso literário do ano!  

publicado por Domingos Amaral às 12:15 | link do post | comentar | ver comentários (4)
 

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