A moral da História
São sempre os mais fortes que escrevem a moral da História, e a crise das "dívidas soberanas" não é diferente. Desde 2009 a narrativa é poderosa, um conto moral: existem povos que "viveram acima das suas possibilidades", Estados "despesistas", países que "gastaram o que não tinham". A Grécia "aldrabou os números", Portugal e Espanha "viveram a crédito", a Irlanda "arriscou em demasia na banca", e a Itália é "uma desorganização permanente".
Subtilmente, a narrativa da "crise da dívida" criou dois grupos na Europa: os devedores e os credores. De um lado, os vilões, os feios, porcos e maus; os mal comportados e irresponsáveis (Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha e Itália). Do outro lado, os bons, os puros, os responsáveis, os bem comportados (a Alemanha à cabeça, mas também a Holanda e a Finlândia).
Este conto moral tornou-se imensamente popular. Não só no Norte da Europa, não só em grande parte da imprensa mundial, em especial a económica, mas também e surpreendentemente na maioria da população dos países do Sul. Confrontados com a crise, e com a sua narrativa moral, grande parte dos gregos, irlandeses, portugueses, espanhóis e italianos, interiorizaram estas ideias e sentiram-se "culpados" dos "males" que tinham cometido. Claro que "os políticos" desses países eram os mais fustigados e os dedos acusadores viraram-se para eles, mas dentro de muitos de nós, habitantes do Sul, a fábula moral da culpa e do erro assentou arraiais. O terreno estava adubado para o que viria a seguir.
Evidentemente, se há "culpados", é preciso que eles expiem as suas culpas, é preciso que eles sejam castigados em conformidade. Mais fortes, mais ricos, mais poderosos, os países do Norte, liderados pela Alemanha, decidiram que a redenção do Sul só viria através do sofrimento. Primeiro, era preciso castigá-los, e castigá-los bem, para que eles aprendessem a lição. Só através da punição se purificariam os "pecadores" do Sul.
Nasceram então as "políticas de austeridade", a receita a aplicar aos prevaricadores. Desenhadas pelos técnicos da economia moral, as políticas de austeridade mais não são que um "castigo", mas um "castigo" libertador e evidentemente irrecusável, pois traz dentro dele a promessa de um futuro melhor, cenoura com que nos convenceram. Supostamente, a aplicação do castigo, da austeridade redentora, lavaria as nossas almas mas sobretudo deixar-nos-ia revigorados, "competitivos". A moral da história foi, até agora, sempre esta: és culpado, portanto terás de sofrer, mas se sofreres chegarás à redenção, e no fim serás mais puro e mais forte.
Contudo, há um pequeno problema com este conto moral europeu. É que, cinco anos depois do início da crise, não há forma da redenção chegar. A economia, esse poço profundo onde só nadam problemas humanos, não se compadece com histórias da Carochinha e do João Ratão. A economia, ao contrário do que muitos pensam, não é uma fábula moral, é muito mais complexa do que isso.
De repente, os "supostos" culpados começam a revoltar-se. De repente, o sofrimento não traz purificação nem ressurreição, mas apenas mais sofrimento e degradação. De repente, nascem narrativas alternativas e conspirativas, contra a "hegemonia alemã", contra os "credores", contra o pensamento dominante. Aquilo que parecia uma fábula límpida e eficaz, começa a estilhaçar-se à nossa frente. De repente, os povos do Sul suspeitam que o sofrimento pode ter sido uma estratégia intencional para impôr até à eternidade o domínio dos povos germânicos sobre todos os outros.
Como irá esta história acabar, ninguém o sabe ainda, mas já temos pelo menos uma certeza: o guião da fábula moral que nos contaram estava incompleto, e provavelmente terá de ser revisto e alterado. Aquilo que parecia um conto simples, curto e com um final feliz, tornou-se numa telenovela prolongada e deprimente, todos os dias mais imprevisível. É isto que costuma acontecer quando se mistura a moral com a economia. Se juntarmos um decilítro de água de esgoto com noventa decílitros de leite, o resultado não é um litro de leite, mas sim um litro de água de esgoto...Será que ninguém vê como se está a espalhar a recessão pela Europa, ninguém vê como a água de esgoto está a estragar o leite?